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No caminho do não-dualismo


Nossa maneira dualista de ver a vida precisa ser compreendida e superada se quisermos ser realmente praticantes do zen.

Assim, se a gente se apegas somente às coisas que nossos sentidos percebem, ao chamado mundo material (relativo), acontece sempre uma certa sensação de vazio, uma carência de alguma outra realidade que não sabemos bem o que seja. Mas, se por outro lado nos apegarmos somente a essa outra realidade que não sabemos o que seja (o absoluto das religiões) e abandonarmos as realidades imediatas e concretas dos sentidos, acontece igualmente uma sensação de vazio, de falta de vida.

Durante a longa história de sua presença na Terra, o homem sempre se caracterizou por uma oscilação quanto ao lugar em que deve satisfazer sua sede de transcendência: se no palpável, mas impermanente, mundo dos valores relativos; se no incógnito, mas confortador, mundo do absoluto. E o sofrimento da insegurança e da ansiedade é maior ou menor em certas culturas, em certas épocas. Mas o sofrimento sempre acompanhou o homem. Isso porque, tanto quando procuramos força vital no lado chamado material, o lado dos fenômenos (existência), onde tudo é relativo e finito; como quando a sede de transcendência nos leva para o chamado lado espiritual (essência), onde tudo é absoluto e infinito, o resultado, embora diferente, continua sendo a convivência com o sofrimento.

Como então experimentar o relativo e o absoluto ao mesmo tempo?

Experimentar o relativo e o absoluto ao mesmo tempo é sentir, intuir que um não pode existir sem o outro. Fora do relativo, onde procurar o absoluto? Fora do absoluto, onde procurar o relativo? É preciso perceber que eles não são opostos e sim complementares. Um não exclui o outro. Ambos existem, mas são uma só realidade. Como no conhecido exemplo dos dois lados de uma moeda. Ou da árvore e da floresta. Nossa mente, condicionada no pensamento, na classificação dualista dos fenômenos, tem total dificuldade em ver esse sentido profundo de complementação entre os aparentes opostos.

Mas transcender os opostos não é o mesmo que simplesmente equilibrá-los, harmonizá-los pela razão. Não é o mesmo que planificar um comportamento moderado do tipo nem tanto ao mar, nem tanto à terra, ou nem oito, nem oitenta. Isso fatalmente levará apenas a um terceiro posicionamento de nossa mente, a um terceiro apego que atende pelo nome de caminho do meio. No momento em que se transcendem os dualismos, transcende-se também a ideia de um caminho do meio ao qual nos apegamos por medo de ficar com as mãos vazias, com medo de cair no nada. Uma rosa desabrocha em sua plenitude. Justamente porque não está apegada aos conceitos de plenitude, de limitação ou caminho do meio.


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Examinar alguns dualismos básicos nos colocará mais próximos de uma compreensão maior do que foi dito.

A felicidade e a infelicidade. Por que nos sentimos infelizes? Não será porque nos encontramos em uma situação oposta àquela que idealizamos como situação de felicidade? A infelicidade é a consciência de um estado onde a felicidade não tem lugar. Assim, se não houvesse o conceito de felicidade, não poderia haver o conceito de infelicidade e vice-versa.

Isso não quer dizer, naturalmente, que durante a vida não se sucedem períodos em que viver se torna mais agradável ou mais desagradável. Isso faz parte da vida, como o dia e a noite em cada vinte e quatro horas, como o verão e o inverno de cada ano etc. São movimentos que mantêm a existência do ritmo. O movimento pendular cria o ritmo, e este é a base da vida. A vida é uma pulsação.

O engano está em rotular, em discriminar e isolar os momentos do ritmo. O engano está em ver como realidade absoluta (a felicidade ou a infelicidade) realidades que são relativas e interdependentes. Interdependentes porque uma não pode viver sem a outra.

Sem estarmos apegados a uma idealização de vida (felicidade), não existiria a idealização oposta (infelicidade). Exemplo: um homem perdido numa floresta, sofrendo todo tipo de desconforto, sente-se infeliz e sonha com o que, para ele, seria naturalmente a felicidade: uma casa, uma cama macia, bastante comida, calor humano etc. Muito bem. Mais tarde, esse homem vem a atingir seu ideal de felicidade. Volta da floresta e se instala na tal casa que sonhou. E suponhamos que fosse obrigado a ficar dez dias deitado numa cama bastante macia como a que sonhou e comendo em grande quantidade tudo o que sonhou sua fome. É sabido que o novo estado em que se encontra começaria a lhe parecer bastante infeliz.

Quando as águas de um rio têm de correr por um vale mais estreito, elas correm. Quando têm que saltar do nível em que estão para outro muito mais baixo, elas saltam. Quando têm que correr entre pedras, elas correm. E não consideram essas situações como infelizes. Cachoeira é cachoeira e não infelicidade. Perda de uma pessoa amada é perda de uma pessoa amada e não infelicidade. A dor de se perder uma pessoa amada é genuína e profundamente natural. Mas dar a essa nova situação o nome de infelicidade é um desejo de perpetuar a dor, é um bloqueio à possibilidade de que momentos ditos felizes possam vir a acontecer.

Assim, o sadio é não se apegar nem à ideia de infelicidade, nem à ideia de felicidade. O homem “feliz” é aquele que não deixa sua cabeça ficar cheia de conceitos de felicidade, nem de conceitos de infelicidade. Não estamos no mundo nem para ser feliz, nem para ser infeliz. Estamos no mundo para fluir. Como o rio pelas montanhas, pelas planícies, pelas florestas, sob a chuva, sob o sol, além da felicidade e da infelicidade. Nunca nos esquecendo de que o rio redobra sua força quando encontra um obstáculo.


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Um outro dualismo significativo e que cria muito sofrimento em nossa vida social é o de sermos aceitos ou rejeitados pelos outros. Se o meio social em que vivo, ou uma só pessoa com quem me relaciono, precisa de mim para alguma coisa, então me sinto sócio de um clube, sou aceito. Caso contrário, fico de fora, me sinto rejeitado.

Se a mulher que amo também me ama, me sinto aceito. Se não me ama, me sinto rejeitado.

Se vou a uma festa e consigo ser notado, me sinto aceito. Se passo despercebido, me sinto rejeitado.

Se na hora da promoção numa organização de trabalho sou promovido, me sinto aceito. Do contrário, o sentimento da rejeição.

Mas, acontece que determinada pessoa ou grupo de pessoas pode não precisar de mim independentemente de me querer bem ou mal. A mulher que amo não precisa necessariamente sentir amor por mim. Se não recebo a promoção, pode ser porque realmente não mereça ou porque o responsável por ela seja mesmo parcial e dê mais importância às suas simpatias pessoais do que à eficiência do trabalho. São fatos.

Ser rejeitado ou aceito é uma coisa. Sentir-se rejeitado ou aceito, apegar-se à ideia de rejeição ou de aceitação, já é outra coisa bem diferente.

De tudo isso, somos forçados a concluir que os sentimentos de rejeição ou de aceitação não passam de estados mentais sobre determinadas realidades. O que aprofunda o dualismo, o conflito entre o sujeito e o objeto. Entre a coisa ou fato e o que pensamos e sentimos.

Se uma pessoa não gosta de mim, isto é um fato que está no eu dessa outra pessoa, não em mim. É a outra pessoa, não eu. Agora, quando sinto em mim o não gostar do outro, quando me aborreço com o fato do outro não gostar de mim, aí meus sentimentos passam a existir em função dos sentimentos do outro. E o mesmo com relação ao fato de um outro gostar de mim.

Como, por conta própria, não temos muita certeza se somos ou não o que imaginamos ser, precisamos da aceitação dos outros para confirmar. Daí a necessidade de nos apegarmos ao sentimento de rejeição ou de aceitação. E quanto mais o homem cultiva o seu eu, se fecha em si mesmo, mais ele tem necessidade de ansiar pelo aplauso e temer a vaia. Porque, ao se apegar demais a si mesmo, só pensar em si mesmo, o homem está ao mesmo tempo procurando uma definição para o seu ser. Quem se fecha em si mesmo não é, como parece, alguém que não liga para a opinião dos outros, mas quem está mais necessitado dela.

Se não tivermos na mente as ideias contraditórias de aceitação ou de rejeição, seremos aceitos por quem tiver necessidade de nos aceitar e rejeitados por quem tiver necessidade de nos rejeitar. Só isso.

Somos aceitos ou rejeitados de acordo com circunstâncias determinantes, e não porque sejamos essencialmente uma entidade aceitável ou rejeitável. Mas seremos entidades aceitáveis ou rejeitáveis se colarmos em nós esses rótulos. É sabido que uma pessoa apegada à ideia de rejeição induz os outros a rejeitá-la.

Quando temos, a priori, o conceito de sermos rejeitados, nos fica difícil compreender a realidade circunstancial da rejeição.


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Mais um dualismo. Vício e virtude. De todos os dualismos, este parece o mais adequado para exemplificar o sentido relativo do dualismo.

Sem a existência de uma ideia de virtude, a ideia do vício perderia o sentido. Um viciado, mesmo quando tenta se enganar glorificando o vício como uma forma de coragem ou de liberdade, permanece preocupado com a virtude. Um virtuoso não passa um dia sem condenar ou temer o vício.

Quanto mais nos apegamos a um lado, mais o outro lado cresce dentro de nós.

A relatividade desses opostos é também ilustrada pelo comportamento de uma comunidade de piratas, onde a virtude é saber roubar melhor. Ou na guerra, onde o ato de matar é o máximo da virtude.

As ideias de virtude e de vício (de bem e de mal), ao contrário do que se afirma, não são um freio contra o animal que há no homem. Se fosse, não haveria guerras religiosas, sem a exploração do homem pelo homem. A exploração de um animal por outro não acontece na natureza. Por isso, é mais fácil aceitar a evidência de que a crueldade humana nasce justamente do conflito antinatural que existe entre o bem e o mal, entre o vício e a virtude.


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A velhice e a juventude é um dualismo que angustia qualquer ser humano que já passou dos quarenta ou dos cinquenta anos. Ser jovem é estar começando. Ser velho é estar acabando.

Mas, começando e acabando o quê?

A vida.

Mas, a vida tem começo e fim?

A vida é o ato de viver. E o ato de viver começa e termina em si mesmo. O nosso julgamento do ato de viver é que classifica o ato de agradável ou desagradável, de começo ou fim. O ato de viver é o ato de viver, e a sensação de estarmos vivos é a única coisa palpável que possuímos, sejamos jovens ou velhos. Se compreendermos profundamente a realidade da vida, nossa adequação, nossa harmonia com ela é uma consequência natural. E é nessa harmonia que está a sensação de se sentir cheio de vida, nunca no fato de ser jovem. Do contrário, todos os jovens seriam felizes, cheios de vida.

Um peixe vive tão à vontade num oceano quanto num aquário. Porque o seu ato de viver só acontece no aqui onde ele estiver e não no todo do mar. Do mesmo jeito, nosso ato de viver, nossa vida, só acontece no agora em que estivermos e não nos oitenta anos que poderíamos viver. Um pássaro não fica triste no seu ninho se lamentando por estar ficando velho. Mas vive em todos os minutos em que estiver vivo, porque viver, estar vivo, exercer sua vida, é a única realidade que conhece.

Assim, o dualismo que existe entre ser moço e ser velho não passa de uma atitude mental originada dos conceitos que temos sobre o aproveitamento da vida. Nas sociedades primitivas, na maioria delas, assim como na sociedade utópica de Platão ou nas velhas civilizações orientais, o sentido relativo de velho e de moço chega a ser invertido, é o oposto do que conhecemos: o poder, o prestígio, os privilégios são desfrutados pelos velhos e não pelos jovens. Mas o ponto fundamental para superar o dualismo velho-moço situa-se no sentido profundo da vida e não em seus aspectos relativos.

Para os que só sabem enxergar na vida uma realidade que tem começo, meio e fim, o moço é o bem e o velho é o mal. Mas se, no entanto, entendermos que da vida todos nós só temos o aqui-agora, e que para viver o aqui-agora plenamente precisamos estar além dos dualismos de agradável ou desagradável, de felicidade ou infelicidade, de velho ou moço, de começo ou fim, então é evidente que ser velho ou ser moço nada tem a ver com o assunto.


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O dualismo entre ação e não-ação ajuda a compreender outro dualismo que talvez seja o mais importante de todos: o dualismo do ser e do não-ser, ou da vida e da morte. O dualismo entre ação e não-ação é responsável, em grande parte, pela acentuada incidência das doenças cardiovasculares, infartos, derrames etc. E sobretudo das ansiedades.

Hoje, mais do que nunca, o homem acredita que viver é estar agindo. Agindo no sentido de estar fazendo coisas. E fazendo coisas no sentido de coisas produtivas. As programações que fazemos para nossas vidas esclarecem bem esse ponto.

O adolescente tem toda sua vida futura já programada, o colégio, a universidade, o casamento, a carreira profissional, as viagens, os filhos, a casa própria, a segunda casa na praia ou no campo, casa esta que já é destinada aos últimos anos de vida depois da aposentadoria. O descanso e a diversão são hoje tão minuciosamente programados, medidos e contados, como as operações de produção. Em cada hora do final de semana, há uma coisa programada que deve ser feita. Bom, mas continuar falando sobre isso não tem sentido, porque é fato por demais conhecido e discutido.

Se o homem não está agindo, não está fazendo alguma coisa que dê vantagem, se o homem não está tendo o tempo, se não está utilizando cada minuto, surge logo o sentimento de culpa. E é esse sentimento de culpa que nos dá a chave do dualismo ação e não-ação. Mas não é o sentimento de culpa em si que nos interessa aqui. Vamos usá-lo apenas como sintoma de um fato mais grave. O fato mais grave é o medo do nada, do vazio, do não-ser, da morte. Agir é estar vivo. Não agir é estar morto. O homem não pode deixar cair a peteca. Não pode haver solução de continuidade entre uma ação e outra.

Mas vamos entender esse dualismo.

Estou com um martelo em minha mão. E começo a dar marteladas em um objeto. Suponhamos que, quando o martelo bate no objeto, isto seja uma ação. E que, quando o martelo sobe, se distancia, isto seja não-ação. O que existe neste exemplo? Dualismo ou complementação do gesto de martelar? Ou então: será que poderia haver a martelada se não houvesse o movimento de levantar o martelo?

Outra maneira de abordar esse dualismo da ação e da não-ação é o sempre bom exemplo do mar e das ondas. Se chamarmos as ondas de ação e o mar de não-ação, veremos logo que os dois são uma só e a mesma realidade. Entre uma onda (ação) e outra, o que existe? O nada, o vazio, o não-ser, a morte? Não. Existe o mar.

As formas só existem, só são percebidas por nossos sentidos porque existe o chamado espaço, que funciona como uma espécie de pano de fundo onde elas se destacam.


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Um último dualismo. Sujeito e objeto.

Quem sou eu? Diante dessa famosa pergunta, todas as respostas levam fatalmente à descrição grosseira ou sofisticada de um objeto. Tudo o que eu disser que sou eu serão apenas informações sobre um objeto. O que digo que sou eu, então, obedece ao mesmo comportamento mental que me leva a dizer sobre quaisquer objetos exteriores. Assim, existe um objeto que conhece, que tem consciência, que tem informações sobre determinado objeto. Muito bem. Então, não sou esse objeto que me descrevo como sendo eu. Sou o objeto que conhece, que descreve esse objeto.

Pronto, já sei quem sou eu.

Será que sei mesmo?

Vejamos uma nova pergunta: quem é esse sujeito que conhece o objeto chamado eu? A única resposta será esta: este sujeito é meu verdadeiro eu.

É, mas infelizmente o problema não termina aí. Há uma nova pergunta: se você tem consciência de existir esse tal verdadeiro eu, quem é o sujeito que conhece esse novo objeto?

E assim, como se vê, a coisa não tem fim.

Porque sempre que houver um sujeito, há um objeto.

A solução, portanto, só poderá ser alcançada quando não tivermos na cabeça nem a ideia de um sujeito, nem a ideia de um objeto.


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Na transmissão do espírito do zen, são conhecidos os métodos que visam bloquear o hábito da nossa mente. E levam o discípulo a conhecer diretamente aquilo que só sabia por meio de ideias sobre, de conceitos, de palavras. Assim, voltando à historieta já contada, o mestre com um bastão na mão diz ao discípulo: “Se você disser que isto é um bastão, bato com ele em você. Mas, se disser que não é um bastão, também bato com ele em você. Agora, me diga o que é isto”. Pronto, a porta para a aproximação racional, verbal, conceitual do bastão foi fechada. E o discípulo terá que conhecer aquela coisa em sua coisicidade e não mais em seu nome, em seu conceito de ser ou não ser. Para conhecer realmente aquela coisa, o discípulo terá de transcender o dualismo que existe em sua mente entre o bastão e o não-bastão.

Mas, além desses métodos conhecidos pelo nome de mondo e que se apresentam não só na forma de perguntas e respostas, mas também de pequenas histórias; além dos famosíssimos koan; além dos sutras; além dos exercícios de concentração, de profunda atenção e integração nas atividades cotidianas; além de todos esses métodos que são sustentados e iluminados pela prática diária do zazen, usa-se também a força eficiente das imagens e símbolos que os poemas oferecem.


Nelson Coelho, Zen: experiência direta de libertação (Itatiaia, 1978)

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