Qualquer pessoa que tiver vontade de levar às últimas consequências o problema eterno entre ser e não ser, entre unidade e multiplicidade, entre individual e universal, chegará fatalmente a um impasse. E, ao tentar destruir o impasse, descobrirá que, usando apenas o instrumento da razão, da lógica, jamais encontrará solução satisfatória. Isso porque a razão, o intelecto, trabalha com discriminações, com classificações, com particularizações, com cada coisa de uma vez. Isto é: para se chegar à realidade chamada X, tem-se primeiro que eliminar tudo o que não for X. Assim, um objeto passa a ser identificado como mesa simplesmente porque não é cadeira, nem violão, nem fígado, nem cachorro, nem bochecha, nem licor de ovo, nem lua, nem tartaruga, nem nenhum dos outros objetos captados por nossa percepção. É da natureza da razão trabalhar assim. Todo processo de conhecimento que não seguir esse princípio deixa de ser racional.
Agora, olhemos a realidade total do impasse mencionado. Qualquer pessoa que tiver coragem de levar às últimas consequências o problema da unidade absoluta de todos os fenômenos e da multiplicidade relativa dos fenômenos acabará por descobrir, assustado, que existem provas irrefutáveis de que os indivíduos (unidades) existem. Mas, ao mesmo tempo, terá que aceitar (pois as provas são definitivas) que todos os fenômenos (unidades individuais) não possuem individualidade e não passam de ilusões, de meros fragmentos do Todo indivisível. Assim, vemos ao mesmo tempo duas realidade: tudo é o Todo, o Um indivisível, e não podemos negar esse fato. E a outra realidade que também salta à vista é esta: as unidades existem, uma cadeira não pode ser confundida com uma girafa.
Como sair desse impasse?
Como aceitar, pela razão, que determinado objeto existe e não existe como unidade em si? Como aceitar que X é X e não-X ao mesmo tempo? Diante desse impasse, é natural que a razão perca toda sua eficiência como instrumento de conhecimento. E é aqui, talvez, que poderemos encontrar o primeiro motivo da existência do pensamento dualista. O pensamento dualista existe porque o dualismo existe.
Os chineses taoístas estruturaram a realidade como sendo uma interação dualista. Eles enxergaram o dualismo na raiz de todas as coisas. O yin e o yang são dois polos. Nada existe sem o movimento desses dois polos, que são opostos, mas são complementares porque um não elimina o outro. E este é mais um exemplo que sublinha a existência básica do dualismo. Mas, é preciso insistir que o yin e o yang não são conflitantes.
Assim, o pensamento dualista existe porque o dualismo existe. Dizer que o dualismo não existe é negar a realidade. O pensamento dualista deve ter nascido porque o homem viu uma realidade dualista diante de seus olhos e não conseguiu negá-la. A realidade cósmica não é monolítica. Da mesma maneira que a realidade cósmica é monolítica. E tudo indica que é mais fácil apenas enxergarmos o sentido dualista da realidade. Do contrário, essa não seria a condição humana dominante no decorrer da história.
Vejamos o mesmo problema com a ajuda da psicologia. Pesquisas contemporâneas mostram que o recém-nascido humano não percebe as formas da mesma maneira que nós percebemos. Cadeiras, casas, árvores, outras pessoas etc. são percebidos pelo recém-nascido apenas como fluxos de energia. As formas caracterizadas, qualificadas como nós as vemos, pertencem portanto a um estágio mais avançado de desenvolvimento, o estágio da conceituação fornecido pelo aperfeiçoamento da atividade intelectiva. Mas, mesmo aí, existe a multiplicidade representada pelos diferentes fluxos de energia, dos comprimentos das ondas de vibrações. Além disso, os fluxos de energia podem ser agradáveis ou desagradáveis. Dualismo.
Outra informação também fornecida pela psicologia nos diz que, nos primeiros meses de vida, a criança ainda não se conhece como um indivíduo. Ou seja, ainda não aprendeu a se isolar do Todo. Por um lado, poderíamos dizer que aí o dualismo está ausente. Indivíduo e Todo são uma coisa só. Mas a explicação continua e nos dá evidências do dualismo: quando a criança sente dor, imagina que sua mãe ao lado também está sentindo dor. Mas, também nesse caso, permanece a sensação de dualismo e de multiplicidade. Porque a criança distingue a sensação de dor da sensação de prazer e reage de acordo com essas sensações e seus múltiplos tons.
Com isso, não estamos querendo afirmar que o recém-nascido conhece o dualismo, ou melhor, que carregue o problema, o conflito do dualismo. Queremos apenas sublinhar a existência remota do dualismo ou da multiplicidade. Ou diferenciação, em oposição a uma visão unitária.
O germe do dualismo sempre existiu e sempre existirá. Mas uma coisa é o germe, a semente. Outra coisa é a árvore. O dualismo como conflito de contrários, como radicalização, é que poderá ter tido sua origem em determinada fase da evolução humana. Na mitologia ocidental, mais particularmente da tradição hebraico-cristã, o episódio da Queda, do pecado original, da maçã, pode fornecer uma indicação de que a humanidade nem sempre padeceu do conflito dualista. O episódio registra a consciência coletiva de um fenômeno novo na evolução do homem. Nenhuma lenda nasce do nada. Num certo momento de nossa evolução, passamos a ter consciência de nós mesmos como entidade separada do todo. (Como acontece com a criança em seus primeiros meses.) Passamos a perceber que nossa mãe não está sentindo a mesma dor de barriga que estamos sentindo. Passamos a acreditar que temos uma identidade que é só nossa e que é limitada pela nossa pele. E, embora o mito da Queda dê mais importância à aquisição da consciência do bem e do mal (dualismo moral), na realidade o que adquirimos foi a consciência de nós mesmos como entidade isolada, separada do Todo (Deus). Foi o nascimento do Eu.
Costuma-se, com certa razão, apontar a origem do pensamento dualista ocidental nas posições filosóficas assumidas por Platão (427-347 a.C.) e por Descartes (1585-1638). Platão e Descartes desenvolveram uma concepção idêntica sobre a realidade do ser. Partindo ambos da mesma constatação de que os fenômenos (existência) percebidos pelos sentidos carecem de realidade absoluta, irão conceber a ideia (essência) como única realidade possível. Assim, segundo eles, as ideias são inatas e permanentes.
Para Descartes, se o homem, que é um ser imperfeito, consegue conceber uma ideia de perfeição (Deus), isso contraria a lei de causa e efeito (um ser imperfeito não poderia conceber uma ideia perfeita). Assim, sua lógica irá concluir que essa ideia de perfeição só poderia ter sido colocada no homem por Deus, que é perfeito. E, por isso, a ideia é uma realidade essencial, inata, permanente, ao contrário dos fenômenos materiais, que são impermanente e ilusórios. Os fenômenos são apenas sombras, ilusões, como afirma Platão em seu famoso Mito da Caverna (República).
Assim, nos dois pensadores, vemos a ênfase dada ao dualismo entre ideia e fenômeno físico. Entre espiritual e material. Entre mente e matéria. Mas a própria necessidade imperiosa de se encontrar uma verdade em oposição ao falso começa um pouco antes da filosofia grega. E alguns autores chegam a afirmar que, sem essa necessidade, de origem não grega, a filosofia não teria nascido.
Embora A. C. Bouquet, da Universidade de Cambridge, não aceite a possibilidade de uma ligação cultura entre o pensamento de Zoroastro (660-583 a.C.) e o dualismo hebraico (bem e mal) encontrado no pensamento dos profetas, Albert E. Avey, da Universidade de Ohio, acredita que Zoroastro exerceu influência sobre as ideias hebraicas de bem e de mal e, sobretudo, sobre a existência de uma entidade, de uma corporificação do mal, Satã.
Zoroastro via em todo processo do Universo uma batalha contínua entre as forças do bem e as forças do mal. Ahura Mazda era o deus da luz dos persas. E Angra Mainyu era o espírito do mal.
Consultando o Avestra (texto sagrado atribuído a Zoroastro), vamos encontrar passagens como estas: “Eu sou Zoroastro, aquele que odeia com toda sua força o homem falso. Mas sou também um forte defensor do homem que está do lado da verdade”, “No princípio, os dois espíritos eram gêmeos, um era bom e o outro era mau”. Nos textos, encontramos também frequentes referências a duas entidades celestiais. Uma chamada Pensamento Bom (ou do bem) e outra chamada Pensamento Mau (ou do mal).
Nem no pensamento da Mesopotâmia, nem no pensamento do Egito, nem no pensamento da Índia (o último, como o da Pérsia de Zoroastro, de origem ariana por meio dos Vedas), encontramos a ideia de uma entidade chamada Diabo em oposição direta à ideia de Deus. Assim, o dualismo como conflito de pensamento ou de consciência parece ser anterior a Platão. E, mesmo após Descartes, o dualismo ainda iria sofrer um novo e forte impulso numa filosofia que parece ter sido a tônica do século 20.
A predisposição talvez patológica para o dualismo extremado de Nietzsche teria levado o filósofo a se apegar às ideias de Zoroastro (Zaratustra). E sua influência neste século pode ser uma das raízes de nossa neurose coletiva, de nosso conflito entre o sucesso e o fracasso, entre a força e a fraqueza, entre a desesperada ânsia de poder e o grande medo da impotência. Portanto, para os que precisam de um bode expiatório, este seria Zoroastro.
Mas, aqui, devemos parar a procura das origens do pensamento dualista. Pelo menos com o instrumento da especulação intelectual ou apenas racional. Mas, sem o comportamento apenas racional, quem estaria interessado na procura? Numa procura que nada tem a ver com o aqui-agora? E que, por isso, não passa de divertimento intelectual ou de nova fonte de ansiedade.
Mas resta, mesmo assim, um saldo útil: a consciência de um conflito dualista não parece ter nascido com o homem. E, assim como veio, assim pode ir.
Nelson Coelho, Zen: experiência direta de libertação (Itatiaia, 1978)
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