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Solidão e sociedade

Atualizado: 5 de ago.


Toda procura profunda de si mesmo nos leva fatalmente a algum afastamento dos outros. Mas, se for apenas esse mergulho na solidão o saldo dessa difícil e penosa arte de se autoconhecer, então seria bem melhor continuarmos ignorantes de nós mesmos e eternamente iludidos com as mesmas ilusões da sociedade e da cultura que nos produziu. Porque o sofrimento dessa ilusão que muitos de nós sabemos ser tão grande é ainda menor que o sofrimento da solidão, que o diálogo cotidiano com o nada.

Por isso, e isso é importantíssimo, todo caminhante do mais difícil dos caminhos nunca deve esquecer que o afastamento social, o fechar-se em si mesmo, não é mais do que outro obstáculo do mesmo caminho.

Enquanto estamos participando da sociedade dos homens, iludidos com seus valores e metas, viver é um ato difícil e cheio de decepções. E todos sabemos disso. Há as competições, as invejas, os ódios, os medos, as dúvidas. Há o anseio de vencer. Há a ansiedade de fracassar. Há o impulso consciente de ser sincero, verdadeiro, justo, bom, contrastando com a necessidade de ser hipócrita, falso, injusto, para que nossas metas de sucesso e mesmo de pura sobrevivência sejam defendidas. E esse conflito gera naturalmente a insegurança interior e o consequente medo de viver. Medo de viver que não se restringe somente a essa esfera, vamos dizer moral, mas que sombreia toda a existência pelas inseguranças naturais à própria vida, como a morte, a doença e a velhice, para só citar as maiores.

Essa situação de sofrimento, no entanto, é compensada pela sensação de relativa segurança que temos por nos sentirmos ligados ao eu social. As regras, rituais e valores da nossa cultura, por absurdos e injustos que sejam, são sempre um forte apoio para o nosso existir diário. São sempre uma usina de sonhos e de esperanças a fornecer-nos diariamente um dose de ópio.

Assim, o sofrimento do homem social é um sofrimento sem desespero, é um sofrimento compensado, um sofrimento com válvula de escape. Mas é preciso esclarecer que essa falsa segurança só funciona enquanto ainda acreditamos (um pouco que seja) em suas ditas verdades.

Nas sociedades religiosas ou puramente ritualísticas, o indivíduo acreditava plenamente nos valores e dogmas da sociedade. A necessidade de crença, de fé, já é um sintoma de ruptura na união indivíduo-sociedade. Um primitivo ou um egípcio antigo não pararia para pensar se acredita ou não nos dogmas, nos mitos a que se sentia integrado. Nas sociedades deste fim de segundo milênio, já existe uma ruptura extensa e ostensiva entre o indivíduo e os valores da sociedade. (O indivíduo que melhorou ou a sociedade que piorou?) E o equilíbrio entre os dois (indivíduo e sociedade) passou a ser abertamente manipulado. Deixou de ser espontâneo.

Que está acontecendo com aqueles que estão entendendo a tragédia dessa ruptura que a cada dia se torna maior e, por isso, se recusam a serem simplesmente carregados pela correnteza do não ser enquanto sendo? Apenas sentimos que, se largarmos o corpo, ou seja, se continuarmos nos esforçando por nos identificar, para nos adaptar aos desvalores da sociedade como ela se apresenta, em todo seu espectro de coloração política, sentimos que estaremos fazendo profissão de morte enquanto vivos.

Mas temos medo da marginalização. Do fantasma da solidão. Temos um grande medo de ficar falando sozinhos. Ou de ficar calados sozinhos. E assim continuamos procurando uma brecha no conflito. Uma saída vital e plena de sentido. Continuamos tentando uma equidistância. Continuamos lutando por uma possibilidade de conciliação entre sermos nós mesmos e, ao mesmo tempo, sermos um ser social.

Como sempre na história, em épocas de transição, os jovens, logo que começam a sentir ansiedade, tentam as portas de saída tradicionais: ou experimentam os idealismos políticos que, esperam, possam acabar para sempre com todas as injustiças sociais e criar uma ordem universal onde só haverá a verdade e o bem; ou se deixam hipnotizar por transcendências religiosas que anestesiam as dores da condição humana; ou fogem para as drogas; ou se descarregam na violência organizada para fugir ao suicídio.

Mas, como se sabe, tudo o que sobe tende a cair, e tudo o que nasce tende a morrer. Não existe nirvana fora do sansara. O absoluto está no próprio relativo. Não existe nenhum ponto de chegada. A meta é o próprio caminho.

E, quando atingimos essa compreensão mais madura, entendemos com decepção que o paraíso que esperamos atingir com o escapismo ou com um honesto e nobre ideal revolucionário também não escapa à lei natural da impermanência. Esse é um momento importantíssimo e muito delicado. Um passo em falso e voltamos, mais céticos do que nunca, a uma tentativa de coexistência ingênua com a sociedade. E teremos perdido a oportunidade de descobrir, de compreender que os idealismos e os anseios naturais de libertação, de crescimento, de revitalização e de paraísos precisam ser atos diários, contínuos. O rio nunca para, sem nunca sair do lugar. O rio realiza o tempo todo em seu fluir os ideais de um conservador e de um revolucionário, realiza igualmente os sonhos escapistas e as ações responsáveis. Mas aqueles que pararam no meio do caminho, aqueles que voltaram atrás no seu desenvolvimento, aqueles que por medo insistem em mendigar uma coexistência com a sociedade, poderão descobrir que essa tentativa é, em si, absurda. Absurda por ser uma tentativa de misturar, de harmonizar uma coisa em que acredita com uma outra coisa em que não acredita, ou mesmo que detesta, ou seja, os valores que considera falsos e antivitais. São duas crenças profundas que se opõem em sua consciência. Ou melhor, é a oposição de uma crença e de uma descrença extremadas. E aí está instalado no fundo e na superfície de nós mesmos o mais autodestruidor dos dualismos em toda sua força: o dualismo profundo entre o indivíduo e a sociedade. Entre a solidão e a sociedade. E, quando isso acontece (sendo uma constante entre os jovens nas épocas de transição), é hora de pararmos imediatamente de brincar, de continuar procurando pelo em casca de ovo. Porque começamos a caminhar em terreno minado, que pode explodir a qualquer momento. Estamos já cara a cara com um problema de vida ou morte. Estamos vivendo uma vida que já não é vida e ainda não é morte. Parece vida porque ainda não tivemos coragem de jogar fora as últimas e fracas ilusões que nos fornecem o mínimo de oxigênio para nos manter vivos. E parece morte porque nada mais (ou quase nada mais) dentro e fora de nós tem cara de vida.

Que fazer?

Jogar tudo fora.

Mas, jogar tudo fora?

Jogar fora todos os conceitos possíveis de sociedade, mas principalmente as ideias extremadas de que a sociedade ou está certa ou está errada.

Jogar fora todas as ideias que temos de nós mesmos. Mas, principalmente, as convicções de estarmos certos ou errados.

E será que isso é possível, humanamente possível?

Não, não é possível. Não é possível (e nem adianta tentar) enquanto não tivermos certeza de que o certo só existe porque existe o errado e vice-versa. Enquanto não tivermos certeza de que não existe um certo ou um errado absoluto, e que ambos são interdependentes e impermanente. Mas, voltando à ilusão: saber racionalmente que uma ilusão é ilusão é coisa que os homens inteligentes e observadores geralmente acabam sabendo. Mas, com frequência, caem no lado oposto, isto é, abraçam o niilismo ou o pragmatismo imoral. A certeza de que a ilusão é ilusão só é libertadora quando conseguimos jogar fora até mesmo a ilusão de não termos ilusão. E isso só acontece quando nossa mente deixa de ser um vaso, um continente que serva para conter ideias, conceitos, emoções e pensamento. Quando nossa mente se torna o que ela sempre foi e é: tudo o que existe dentro e fora dela mesma, sem nenhum dualismo. A mente são as ideias, os pensamentos, as emoções, os prazeres, as dores etc. Como também, e isso é importantíssimo, tudo o que existe no chamado mundo exterior.

A mente é o indivíduo e a sociedade numa só e única realidade. E é a essa mente que se dá o nome de mente vazia, mente total ou mente cósmica. Nós somos essa mente. O que é bem diferente de nós termos uma mente. Pois aí existe o dualismo, o conflito entre nós e a mente. Se, como pensamos, nós temos uma mente, quem então seria esse que tem a mente?

Assim, para nos libertarmos do dualismo entre indivíduo e sociedade, precisamos primeiro ir até o fundo e encontrar a origem do próprio dualismo. Não desse ou daquele dualismo, como o que existe entre o indivíduo e a sociedade, mas do próprio dualismo, da sua própria razão de ser.

E o dualismo original, gerador de todos os outros, está desde o começo na falsa ideia que fazemos da mente. Ou melhor: está no falso dualismo, na ilusão de que temos uma mente que manipulamos dessa ou daquela maneira para esse ou aquele fim. Se entendermos que somos a mente e que a mente é nós, se tivermos certeza experimentada de que é um absurdo querermos possuir aquilo que somos, então estaremos para sempre livres do conflito dualista.

O que chamamos de realidade é apenas o que chamamos de realidade. O que chamamos de ilusão é apenas o que chamamos de ilusão. São conceitos, são pontos de vista, são conteúdos do eu. E a prova de que são conceitos e pontos de vista é que variam de pessoa para pessoa. Assim também com tudo o mais que temos em nossa mente. Por isso, enquanto houver uma ideia de dualismo entre nós e a nossa mente, entre esse eu imaginário que julgamos ser e esse órgão chamado mente que julgamos ter, o dualismo persiste.

Por isso, enquanto procurarmos uma verdade, estaremos apenas procurando mais um conceito, mais uma ideia para nos agarrarmos nela. Mas os conceitos só nascem porque achamos que temos um vaso chamado mente no qual podemos guardá-los para usar quando necessário. É uma visão originalmente dualista: eu e minha mente.

Eu penso, dizemos com orgulho.

Mas a realidade é outra: eu sou pensamento.

A ideia que tenho de mim mesmo e a ideia que tenho da sociedade já são em si um dualismo. Ter uma ideia sobre uma coisa já é um dualismo entre a ideia e a coisa ideada. Entre nós e a ideia.

O indivíduo e a sociedade e a sociedade e o indivíduo. A sociedade existe. O indivíduo existe. Mas é impossível saber onde começa um e onde termina o outro. E é aqui que está a chave desse problema, desse aparente dualismo entre indivíduo e sociedade. Mas o conflito nasce porque separamos a nós da sociedade por meio do ato mental de ter uma ideia de nós mesmos e uma ideia da sociedade. Qualquer que seja a ideia.

A solução só aparece, a porta só se abre quando temos a certeza de que não adianta continuar contrapondo conceitos, ideias e julgamentos que temos de nós mesmos e da sociedade. A solução só surge quando não acreditamos mais na eficiência dos conceitos, das verdades, para resolver os chamados conflitos internos. Quando descobrimos por cansaço, por exaustão ou até por nojo do próprio ato de pensar que, com o pensamento, com os conceitos, jamais sairemos da prisão dualista. Quando entendemos que os dualismos existem porque existem os conceitos. Quando descobrimos que o dualismo em si não passa de um conceito.


Nelson Coelho, Zen: experiência direta de libertação (Itatiaia, 1978)

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