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O que é o zen

Atualizado: 17 de out.


O zen nasceu na Índia, com Buda, seiscentos anos antes de Cristo. O instante da iluminação (satori) de Sakyamuni Buda marca o início do zen. Houve um momento, após longos anos de meditação na posição zazen, em que Buda sentiu que entre ele e a realidade não havia mais nenhuma parede. Foi quando rompeu com todos os dualismos. Sentiu que sua pessoa e o Universo eram uma coisa só, una e indivisível. Pela primeira vez conheceu diretamente a realidade, sem conceitos. Esse é, basicamente, o sentido da iluminação de Buda. E isso é o começo, o meio e o fim do zen.

Passados alguns séculos da morte de Buda, o budismo tornou-se uma religião complexa, talvez a mais intelectual e requintada que o homem já produziu na sua sede de explicar o inexplicável. Os sutras, textos sagrados atribuídos a Buda, foram crescendo e se complicando em sutilezas de significação. E a tal ponto o budismo se desviou da sua origem que chegou a se tornar, em alguns pontos fundamentais, o oposto do que Buda pretendeu. Deixou de ser uma religião de conhecimento para virar uma religião de pura fé dogmática.

Mas, ao nascer, o budismo era a primeira e única religião do mundo que não precisava de um Deus para existir. Buda é um exemplo de possibilidade humana. Praticar o budismo é tornar-se Buda. Não há um Deus fora de nós. Não há dualismo. Nascemos Buda e poderemos voltar, pela prática da meditação zazen, a ser Buda. É o encontro com nós mesmos e com o Todo. É a eliminação do falso eu. É a integração absoluta entre sujeito e objeto.

No início da era cristã, começou a haver na Índia uma rebelião contra a distorção do budismo por meio de uma escola que se denominou mahayana. A escola tradicional do budismo, que continuou existindo, chama-se hinayana. O hinayana é a escola do budismo ortodoxo, rígido, dogmático. Considera os sutras como textos sagrados. Mas, sobretudo, visa à libertação do indivíduo do seu carma, que o prende à cadeia do nascimento, da vida e da morte aqui na Terra. E a libertação é o nirvana, a eternidade, o absoluto, o fim das reencarnações. O hinayana visa, portanto, à libertação individual. O mahayana, retornando ao sentido da iluminação de Buda, dá ênfase à realização na vida presente, no aqui e agora, aqui mesmo na Terra e não numa vida futura. E cria o espírito do bodisatva. Ou seja, o praticante do budismo mahayana não liberta somente a si mesmo, mas, após sua libertação, dedica-se inteiramente, e durante toda a vida, a libertar todos os seres humanos. Essa diferença é fundamental e marca, de certa maneira, a origem do zen como uma forma de libertação não-egoísta, não-escapista.

É o budismo mahayana que, no século sexto de nossa era, irá entrar em território chinês. Pelas mãos de um monge chamado Bodhidharma. A ele se devem os fundamentos básicos do zen-budismo. A partir dele, o zen se tornaria uma seita independente. Corrigindo os exageros ortodoxos do budismo hindu (notadamente o budismo hinayana), Bodhidharma insiste em que as escrituras, os sutras, os livros não são indispensáveis para se alcançar a natureza de Buda. E instituiu a norma que até hoje é válida no zen: o ensinamento, a transmissão do zen não deve ser por meio de textos e sim diretamente do mestre para o discípulo. A leitura dos sutras pode ajudar, mas ninguém aprende o zen apenas lendo. O conhecimento deve operar pela prática de se olhar para si mesmo e ver sua própria natureza.

Duzentos anos depois, na China, surge um outro grande mestre, que é também um dos pais do zen: Hui-Neng, conhecido como Sexto Patriarca. Hui-Neng contribuiu com a posição de que o importante não é ficar anos e anos meditando, se aperfeiçoando, se purificando para, pouco a pouco, de degrau em degrau, alcançarmos a iluminação. Para Hui-Neng, o satori pode chegar a qualquer hora, em qualquer lugar, esteja a gente fazendo qualquer coisa. Pode chegar para quem pratica o zen há trinta anos como para quem pratica há alguns meses. É como um estalo, um súbito despertar. É de Hui-Neng a famosa imagem do tijolo que, por mais que seja polido, jamais se transformará num espelho. Ou do sapo que fica sentado corretamente, mas não se transforma em Buda. Com isso, Hui-Neng queria também corrigir os excessos da meditação do tipo hindu, escapista, autoilusória, sem vida, mortificadora e mais para o lado do sonhar acordado do que da realidade desperta. Por isso, a posição de Hui-Neng com relação ao despertar abrupto não deve ser confundida com inspiração divina ou puro acaso. Somente quem tiver levado sua mente a um estado de dúvida total e corajosa no plano existencial é que poderá atingir o satori. O satori, assim, é a ruptura profunda de um estado de grande tensão interior, de forte contradição. É a distensão repentina de uma tensão existencial onde a vida e a morte lutam uma contra a outra.

No desenvolvimento do zen, duas escolas irão destacar-se, cada uma sublinhando uma maneira particular de ensinamento. A escola Rinzai, criada por Rinzai, e a escola Soto, desenvolvida por Dogen. A Soto dá ênfase ao método do zazen no seu ensinamento. A Rinzai, embora também utilize o zazen como base, dá ênfase especial aos koan. Que são uma espécie de enigma que o discípulo tem que resolver sem o auxílio da razão. Servem para silenciar nossos pensamentos, nossas buscas só racionais e lógicas, e dar lugar ao surgimento da intuição. São perguntas de sentido comum, mas que não podem ser respondidas pela lógica. O praticante, ao receber um koan do mestre, deve se ocupar dele dia e noite, até que a solução apresentada ao mestre seja por este considerada satisfatória. Conta-se que, certa vez, perguntaram a Dogen o que ele achava da escola Rinzai. E Dogen teria dito que achava muito boa. “Mas, como?”, estranhou um discípulo. “Mas, como, se eles usam koan e nós não? Então os koan são bons?” Resposta de Dogen: “Infelizmente, há pessoas que não conseguem praticar o zazen, que não conseguem ficar de mente vazia e, por isso, precisam ter alguma coisa em que pensar”.

O zen é um caminho e uma maneira de vida que não pertence a nenhuma das categorias formais do moderno pensamento ocidental. É um exemplo do que é conhecido na Índia e na China como um caminho de libertação. E é semelhante, nesse sentido, ao taoísmo. É uma fusão do taoísmo com o budismo mahayana. Historicamente, o zen pode ser encarado como o resultado, a síntese de longas tradições da cultura da Índia e da China, embora seja muito mais chinês do que hindu. E, desde o século 12, arraigou-se profundamente na cultura japonesa. O zen é um dos presentes mais preciosos que a Ásia deu ao mundo.

Zen, do japonês zazen (sentar-se e meditar), é uma tradução do chinês ch’an, que por sua vez é a tradução do hindu dhyana (meditação).

O zen se opõe a tudo o que é artificial. Propõe um encontro direto com a realidade primeira, sem intermediários, sem conceitos, sem artifícios. Daí o moderno e crescente interesse pelo zen em um mundo onde a civilização mecânica, o artificialismo, o afastamento da natureza, crescem assustadoramente. Um discípulo procurou um mestre zen com o seguinte problema: “Todos os dias tenho de comer, dormir e me vestir. Não aguento mais. Como poderei me livrar disso?”. Resposta do mestre: “Você se livra disso comendo, dormindo e se vestindo todos os dias”. O discípulo: “Não consigo entender sua resposta”. O mestre: “Então coma, durma e se vista”. Isso é o zen. Objetivo. Prático. Não metafísico. “Você já almoçou? Então agora vá lavar os pratos.” Foi a resposta do mestre ao discípulo que lhe perguntou o que era o zen. O zen não deve nunca ser procurado em sutilezas metafísicas ou em abstrações verbais. E, sim, nas coisas e fatos concretos do viver diário. “Comer quando se tem fome, beber quando se tem sede, dormir quando se tem sono.” O discípulo pergunta: “Qual o caminho?”. O mestre responde: “Caminhe”. Para o zen, uma coisa é a utilidade dessa coisa. Uma lâmpada só existe quando se acende. Para nós, é mais fácil compreender e aceitar uma ideia do que a própria realidade. Daí a razão da mente humana viver constantemente elaborando conceitos para interpretar o fato real. Para o zen, o que interessa é a realidade e nunca sua interpretação. Os nomes e definições que damos às coisas obedecem apenas à nossa necessidade racional de trabalhar com palavras, com conceitos, com ideias, em vez de manejar as coisas mesmas. Nada, portanto, mais prático do que uma doutrina que renega, por princípio, toda interferência explicativa por considerá-la fator de obscurecimento da realidade. É famoso o caso do mestre que, precisando escolher um novo integrante para dirigir o templo zen, colocou diante de vários candidatos um grande vaso de barro, como um teste. Todos adiantaram-se em interpretar a presença do vaso. Cada um procurou imaginar uma simbologia para o fato. Nenhuma das respostas satisfez ao mestre. Uns diziam que era símbolo do vazio. Outros, que o barro era o corpo e o espírito era o ar dentro do vaso. Coisas assim. Até que um dos candidatos aproximou-se do vaso, levantou-o e, atirando com ele ao chão, tornou-o em pedaços. Este, que por sinal era inculto, o cozinheiro do templo, foi quem o mestre escolheu para sucedê-lo. Foi o único que tocou no vaso, que se aproximou dele com ação e não com palavras.


Nelson Coelho, Zen: experiência direta de libertação (Itatiaia, 1978)

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