depoimento do lenhador interrogado pelo comissário de polícia
“Sim, senhor. Fui eu quem descobriu o cadáver, disso não resta dúvida. Hoje de manhã, como é meu costume, fui à montanha cortar cedros. Nessa hora me deparei com o cadáver na mata à sombra da montanha. A localização exata, senhor? Bem, creio que dista cerca de quinhentos metros da hospedaria da estação de Yamashina. É um lugar ermo, fechado, os cedros finos se misturam ao bambuzal.
“O sujeito vestia um quimono de seda, desses comuns, azul-claro, e um chapéu pregueado, à moda da capital. Estava caído de costas para o chão e tinha um corte profundo no peito, talvez um golpe de espada. Por causa do ferimento, as folhas de bambu localizadas ao redor do cadáver estavam encharcadas de vermelho. Não, senhor, não corria mais sangue. O corte parecia estar seco. Ah, sim! Havia uma mutuca grudada ao corpo, mas ela parecia tão concentrada sugando o sangue que sequer notou o som dos meus passos.
“Se vi uma espada ou algo parecido? Não, senhor, nada. Apenas uma corda, jogada ao pé do cedro ao lado do cadáver. O que mais?... Hum... Ah, sim! Além da corda, tinha também um pente. Bem, ao redor do cadáver havia somente isso, a corda e o pente. Com certeza, o homem ofereceu resistência, pois o mato e as folhas de bambu estavam completamente espezinhados. Como, senhor? Se havia um cavalo? Ah, não, não. Ali é um local fechado. Um animal desse porte não consegue entrar, mesmo se quisesse. De qualquer maneira, a rota dos cavalos fica afastada, do outro lado do matagal.”
depoimento do monge peregrino interrogado pelo comissário de polícia
“Sim, tenho certeza. Ontem me deparei casualmente com esse homem que hoje jaz morto. Ontem, por volta das... deixei-me pensar... meio-dia, se não me falha a memória. O local fica na metade do caminho de quem vai de Sekiyama para Yamashina. O homem caminhava rumo à Sekiyama, e estava acompanhado de uma mulher montada a cavalo. Não pude ver o rosto da mulher, pois usava um chapéu cujo véu de seda cobria-lhe a face. A única coisa que pude divisar foi a cor de suas vestes: carmesim sobre azul. O cavalo era um baio, e tinha a crina aparada como a cabeça de um monge. A estatura do cavalo, meu bom senhor? Poderia ele medir algo em torno de um metro e trinta? Não tenho uma boa noção. Afinal, sou um bonzo. O homem?... Não, não. Se ele levava consigo uma espada, portava também arco e flechas. Lembro-me particularmente desse detalhe: carregava uma aljava laqueada de preto, de onde despontavam mais de vinte setas, dessas utilizadas em combate, com três penas.
“Nem em sonhos imaginaria que esse homem fosse encerrar seus dias dessa forma. A única verdade continua sendo a efemeridade da vida, essa vida que evanesce como o orvalho e tem a duração fugaz de um relâmpago. Ah! Minhas palavras não são suficientes para expressar o quanto lamento tudo isso...”
depoimento do policial interrogado pelo comissário de polícia
“O homem que prendi, senhor? Ah, é o renomado ladrão conhecido como Tajomaru, disso não há a menor dúvida! Suponho que tenha caído de um cavalo, pois no momento em que o prendi estava ganindo de dor em cima da ponte de pedra de Awataguchi. A que horas o encontrei, senhor? Foi no início da noite de ontem. A propósito, quase consegui prendê-lo noutra ocasião, mas ele escapou por pouco, muito pouco. Na dita ocasião, vestia o mesmo quimono de seda azul-marinho, e levava consigo uma espada com guarda-mão, punho e copos ornados em alto-relevo. Dessa vez, portava ainda arco e flechas, como o senhor mesmo pode ver. Não me diga, senhor! É mesmo? O homem que agora jaz morto também portava tais armas? Ah! Nesse caso, o responsável pelo assassinato é esse Tajomaru, não resta a menor dúvida! Arco enrolado com faixas de couro, aljava laqueada de preto dezessete setas com penas de falcão... Provavelmente tudo pertencia àquele homem! Sim, senhor. O cavalo é um baio de crina curta, conforme o senhor mesmo disse. Deve ter sido obra do destino o cavalo haver derrubado esse ladrão. Obra do destino, com certeza. O baio se encontrava um pouco adiante da ponte de pedra, arrastando a rédea, pastando capim à margem do caminho.
“Dentre os ladrões que circulam pela capital, esse sujeito, esse Tajomaru, tem fama de gostar bastante de mulher. No outono passado, uma cortesã e sua serviçal, uma menina, foram assassinadas na montanha que fica atrás da estátua do bodisatva Píndola, no templo Toribe. A mulher provavelmente visitava o templo para cumprir alguma promessa. Dizem que o responsável por essas mortes foi esse sujeito, esse Tajomaru. E se foi ele quem assassinou o homem — e disso não resta a menor dúvida! —, e havia ainda uma mulher montada no baio, para onde ele a teria levado? Não sei dizer. Posso parecer impertinente, mas peço ao senhor que, por favor, também averígue seu paradeiro.”
depoimento da mulher idosa interrogada pelo comissário de polícia
“Sim, senhor. Aquele cadáver era do homem que desposou minha filha. Ele não era da capital. Era um samurai do governo provincial de Wakasa. Seu nome era Kanazawa Takehiro, e tinha vinte e seis anos de idade. Não, senhor. Era um homem de boa índole, jamais despertaria a ira de alguém.
“Minha filha, senhor? Minha filha se chama Masago, e tem dezenove anos. É dona de gênio forte, não deixa a desejar ao de nenhum homem. Apesar disso, nunca se acostou com outro além de Takehiro. Seu rosto é pequeno, oval, amorenado. Possui uma pinta no canto do olho esquerdo.
“Takehiro partiu ontem para Wakasa, acompanhado de minha filha. Como é que foi acontecer uma desgraça dessas? Já me conformei com o destino do meu genro, mas minha filha... Não sei que fim levou minha menina... Não paro um minuto de me preocupar com ela... Por favor, pela minha vida, ouça o pedido desta velha: mesmo que o senhor tenha de vasculhar cada canto dessa mata, por favor descubra o paradeiro de minha filha! E esse sujeito, esse ladrão chamado Tajomaru, ou seja lá qual for o nome desse canalha, odeio-o do fundo da minha alma! Se fosse apenas o meu genro, mas até a minha menina...”
(Um choro silencioso impossibilitou a interrogada de pronunciar novas palavras.)
FIM DOS DEPOIMENTOS
confissão de tajomaru
“Quem matou aquele homem fui eu mesmo. Mas a mulher não. Para onde ela foi? Sei lá eu. Ei ei ei! Esperem! Não adianta me torturarem, não posso dizer coisas que não sei. Além do quê, na minha atual situação, não tenho por que esconder de vocês qualquer tipo de segredo.
“Encontrei o casal ontem, pouco depois do meio-dia. Nessa hora, o vento soprou e ergueu o véu de seda da mulher, me permitindo olhar de relance seu rosto. Sim, de relance. Foi eu me dar conta do fato, pá!, no instante seguinte já não podia ver mais nada. Absolutamente nada. Não sei, talvez porque observei seu rosto assim, de maneira tão fugaz, tão repentina, ele tenha me parecido um dos mais belos e puros que já vi. Parecia o rosto de um bodisatva! Nessa altura, já tinha tomado uma decisão: tomaria aquela mulher à força, nem que para isso fosse necessário assassinar seu marido.
“Rá! Na cabeça de vocês é algo extremamente grave assassinar um homem, né? Olha, na verdade nem é grande coisa... Mas uma coisa eu digo: para se tomar uma mulher à força, o marido deve necessariamente ser morto. A diferença é que, quando eu mato, utilizo a espada que trago à cintura, enquanto vocês, ah!, vocês não utilizam espada para matar. Não não não. Vocês matam apenas com o poder dos seus cargos, vocês matam com o poder do dinheiro. Algumas vezes até matam com palavras. Palavras bonitas, bem colocadas, dissimuladas e hipócritas. Ou estou mentindo? Estou? Estou? Sim, de fato, não corre sangue, a pessoa segue com sua vida. Mas não deixa de ser, no final das contas, um homicídio. Vamos lá! Vamos colocar peso e medida em nossos métodos para tirar a vida de um homem. O procedimento dos senhores é mais infame? Ou o meu é mais infame? Qual dos dois é mais infame? Juro que não sei.”
(O interrogado sorri de forma irônica.)
“Mas, se pudesse ter meus momentos de prazer com a mulher sem precisar matar o marido, sei lá, também não ficaria aborrecido. Ah, mas claro! Meu estado de espírito naquele momento era o de manter relações com a mulher e poupar, na medida do possível, a vida do homem. Só que, próximo como a gente estava da hospedaria da estação de Yamashina, nada disso seria possível. De jeito maneira. Então, eu elaborei em minha cabeça um plano: conduzir aquele casal para dentro da montanha.
“Não houve nenhum tipo de problema. Nada. Me fiz companheiro de viagem deles e contei que, certa vez, tinha descoberto alguns túmulos antigos na montanha que fica mais pra lá. Exumei as tumbas e, dentro delas, descobri diversas espadas e espelhos. Peguei os objetos e decidi enterrá-los novamente, dessa vez dentro da mata que fica à sombra da montanha. Disse então que, se eles estivessem interessados em comprá-los, eu estaria em vendê-los, e por um preço bem acessível. Foi essa a conversa que soltei para convencê-los. E não é que o homem, sem se dar conta, foi aos poucos abraçando tudo aquilo? Bem, depois... depois depois depois... Ah! Mas a cobiça não é uma coisa terrível? Depois, o casal virou o cavalo na direção da trilha que leva à montanha e foi seguindo meus passos.
“Quando chegamos à frente da mata, disse que os tesouros estavam enterrados ali dentro, e falei para eles entrarem. O homem estava totalmente bêbado de ganância, não fazia objeção a nada. A mulher não apeou do cavalo, disse que iria aguardar ali. Mas, sei lá. Afinal de contas, aquela mata é tão fechada, tão confusa, que achei a decisão dela razoável. No fundo, tudo estava correndo conforme os planos. Deixamos a mulher lá sozinha e nos enfiamos, eu e o homem, mata adentro.
“Durante um longo trecho, a mata é só bambu. Bambu bambu bambu. Depois, uns cinquenta metros pra frente, tem um arvoredo esparso de cedros. Pro que eu tinha em mente, não havia melhor lugar. Comecei a abrir caminho pela mata, dizendo — ou melhor, mentindo — que os tesouros estavam enterrados ali, aos pés dos cedros. O homem, ao ouvir minhas palavras, saiu correndo alucinado em direção aos cedros finos que a gente podia ver de onde a gente estava. Em pouco tempo, os bambus se tornaram dispersos e os cedros começaram a se enfileirar. Foi ali. Logo que chegamos ao local, pá!, eu derrubei o homem no chão. Ele portava espada, então deduzi ser pessoa forte. Mas fora pego de surpresa, não conseguiu esboçar nenhum tipo de reação. Sem demora, amarrei o homem ao pé do cedro. A corda? Corda é ferramenta de trabalho do ladrão! Carrego-a sempre à cintura. Vai saber quando terei de transpor um muro ou algo do tipo. Enchi a boca dele com folhas de bambu, para que não pudesse gritar. Fora isso, não houve maiores complicações.
“Depois de tudo resolvido com o homem, meu próximo passo foi voltar ao local onde a mulher estava. Disse que o homem estava mal, muito mal, parecia ter contraído alguma doença repentina, e que o melhor seria ela se dirigir at[é lá. Preciso dizer que ela abraçou a ideia? Não, né? Tirou o chapéu, tomou a minha mão e, juntos, nos enfiamos na mata. Mas, ao chegar ao local, ao vislumbrar seu marido atado ao pé de um cedro... Ah! Foi o suficiente para ela. Sem que eu percebesse, tirou de dentro do quimono, na altura do peito, uma adaga, e veio em minha direção brandindo a arma. Juro! Até aquele momento, nunca tinha visto mulher de temperamento tão violento! Se eu tivesse vacilado só um segundo, um segundo só, teria recebido um golpe no flanco. A mulher estava possessa! Atacava como uma louca! Eu esquivava, mas ela parecia estar disposta a me ferir, não importava onde. Mas sou Tajomaru. O grande Tajomaru! Sem desembainhar minha espada, consegui desarmar a mulher e jogar sua adaga no solo. Era uma mulher de gênio forte, arisca, selvagem. Mas, embora tentasse, não havia nada mais a fazer. Por fim, possuí a mulher. Sem precisar tirar a vida do marido, conforme havia planejado.
“Sem tirar a vida do homem. Acreditem. Não tinha a menor intenção de assassiná-lo.
“A mulher ficou lá, de cabeça baixa, choramingando. Mas, na hora em que me preparava para fugir e sair da mata, ela agarrou meu braço. Louca! Parecia uma louca! Começou a gritar frases desconexas. ‘Ou morre você ou morre meu marido’, ‘Algum de vocês deve morrer’, ‘Não posso ter minha vergonha exposta a dois homens’, ‘Isso é pior que a morte’. Berrava coisas desse tipo. Ah! No meio disso tudo, também falou que iria acompanhar o homem que permanecesse vivo. Nesse instante, nasceu em mim um desejo bestial de assassinar aquele homem...”
(Uma excitação fúnebre toma conta do interrogado.)
“Falando dessa forma, eu certamente devo parecer uma pessoa atroz, um bicho. Mas isso porque vocês não viram o rosto daquela mulher! Não viram seus olhos naquele instante preciso. Não viram aquelas pupilas em chamas, ardendo. Quando nossos olhares se cruzaram, pensei: ‘Quero essa mulher como esposa, nem que para isso tenha de ser atingido por um raio e cair fulminado no chão’. Tê-la como esposa, tê-la como esposa: esse pensamento martelava em minha mente. Aposto que, na cabeça de vocês, era apenas um apetite sexual desprezível. Mas, não. Se fosse apenas sexo, e nada mais do que sexo, eu com certeza teria derrubado a mulher com um pontapé e fugido. Se fizesse isso, o homem não teria tingido minha espada de sangue. No entanto, dentro da mata, na semiescuridão, eu vivia apenas o momento. E o momento era o rosto daquela mulher, o rosto que me hipnotizava. Estava disposto a não sair dali sem antes matar seu marido.
“Mas não queria tirar a vida do homem de forma covarde. Desamarrei-o e disse que duelássemos.”
(A corda encontrada ao pé do cedro é a mesma que fora abandonada nesse instante.)
“O homem, com feições completamente alteradas, desembainhou sua espada e investiu contra mim, furioso, babando, sem pronunciar palavra. O final da luta? Acham realmente necessário que lhes diga? Minha espada cumpriu seu destino no vigésimo terceiro golpe, perfurando o peito do meu oponente. No vigésimo terceiro golpe, senhores! Não se esqueçam desse dado importante. Mesmo agora, rememorando a luta, considero isso digno de admiração, pois nenhum homem antes desse foi capaz de resistir além do meu vigésimo golpe!”
(O interrogado esboça um sorriso radiante.)
“Logo que o homem foi ao chão, abaixei minha espada empapada de sangue e voltei ao local onde a mulher estava antes do combate. Então, vejam os senhores... Não é que ela não se encontrava mais lá? Comecei a me questionar para onde poderia ter fugido, e me embrenhei pelo arvoredo de cedros tentando achá-la. Mas, sobre o chão acarpetado de folhas de bambu, não havia qualquer sinal de sua presença. Parei e apurei meus ouvidos. Nada. Apenas o ruído agônico que saía da garganta do homem em seus últimos momentos neste mundo.
“Pode ser que, logo que começamos o combate, a mulher tenha atravessado a mata gritando por socorro. Quem sabe? Com esse pensamento em mente, comecei a temer pela minha própria vida. Peguei rápido espada, arco e flechas, e parti imediatamente em direção à trilha que conduz à montanha. O cavalo ainda estava no local, sereno, pastando seu capim, sossegado.
“Pronto. Basta. Os fatos subsequentes são tolos, não valem a pena ser ditos. Ah, sim. Devo dizer que, antes de entrar na capital, já havia me desfeito da espada. É essa a minha confissão. Bom, como sei que mais cedo ou mais tarde meu destino será estar pendurado pelo pescoço em alguma árvore, peço aos senhores que, por favor, submetam-me à pena máxima.”
(O interrogado assume postura desafiadora.)
confissão da mulher abrigada no templo kiyomizu
“Esse homem, que vestia um quimono de seda azul-marinho... Esse homem, que violou meu corpo... Esse homem sorria, escarnecedor, enquanto contemplava meu marido amarrado. Como meu esposo não deve ter se sentido! Fazia força, se contorcia, mas era inútil. Quanto mais se debatia, mais os nós da corda se enterravam em seu corpo. Eu, sem pensar, aproximei-me de meu marido, correndo cambaleante. Minto: tentei aproximar-me. O homem, numa fração de segundo, me derrubou para o lado com um pontapé.
“Foi precisamente nesse instante que eu percebi um brilho hospedado nos olhos de meu esposo. Não sei como exprimir a natureza desse brilho, é algo difícil de colocar em palavras. Complicado... Mesmo agora, sinto calafrios ao recordar-me daquele olhar. Naquele instante, meu marido, impossibilitado de emitir qualquer palavra, transmitira por inteiro seus sentimentos através daqueles olhos. Aquele brilho, no entanto, não era raiva, não era tristeza, não era reprimenda. Era um brilho gelado, indiferente. Era um menosprezo imenso por mim. A cor daqueles olhos me fustigou mais que o pontapé do homem, e foi por causa dela que eu gritei, sem saber muito bem por quê. Por fim, desfaleci.
“Após alguns instantes, recobrei os sentidos. Olhei ao redor e pude constatar que o homem do quimono azul-marinho já havia se dirigido para outro sítio. Os vestígios deixados por ele se resumiam na figura do meu marido amarrado ao pé do cedro. Com muito esforço, ergui meu corpo do chão forrado de folhas de bambu e contemplei seu rosto. No entanto, a dor de seus olhos não diferia em tonalidade daquela descrita instantes atrás. Era uma coloração que exprimia aversão e ódio, escorada por um menosprezo frio e indiferente. Como antes. Vergonha... tristeza... fúria... Não adianta, não importa o que eu disser, nenhuma palavra será adequada para representar meus sentimentos naquele instante. Bem, acabei levantando-me, vacilando, cambaleando, e acerquei-me de meu esposo.
“‘Tu! Depois do que presenciaste, já não me é possível continuar contigo. Estou disposta a tirar minha vida, esse é o pensamento que volteia minha mente. No entanto, peço-te que despeça-te da vida comigo. Presenciaste minha vergonha. Presenciaste minha desonra. Não posso permitir que continues sozinho neste mundo.’ Foram essas as palavras que lhe dirigi. Apenas isso. Nada mais.
“No entanto, meu marido apenas me fitava, com expressão detestável. Refreando meu peito lacerado, saí à procura de sua espada. No entanto, ela provavelmente fora roubada pelo bandido, assim como o arco e as flechas, pois não pude encontrá-los dentro da mata. Por sorte, a adaga estava caída aos meus pés. Erguendo-a, dirigi-lhe novamente a palavra.
“‘Peço que me entregue tua vida. No momento seguinte, darei cabo da minha.’
“Chegando aos seus ouvidos minhas palavras, meu esposo por fim colocou seus lábios em movimento. Sua boca estava obstruída, repleta de folhas de bambu. Por isso, sua voz quase não se fazia audível. No entanto, intuí num átimo o que grunhia. Uma palavra. Apenas uma palavra, carregada de desprezo. Uma palavra: ‘Mate-me’. Nesse momento, não pude mais discernir se vivia na realidade ou num mundo de quimeras. Por fim, cravei a adaga em seu peito, naquele peito coberto por um quimono de seda azul-claro.
“Naquele momento, devo ter perdido novamente os sentidos. Quando por fim voltei a mim e olhei ao redor, pude perceber que meu marido, amarrado, já há algum tempo emitira seu último suspiro. Da abóboda celeste sobre o arvoredo de cedros e bambus, uma réstia de sol poente banhava seu rosto lívido. Reprimindo o pranto, desamarrei o cadáver e desfiz-me da corda.
“E depois?... O senhor gostaria de saber como fiquei após o ocorrido? Não tenho forças para dizer mais do que já foi dito até o presente momento. Digo que não tive coragem de levar a cabo o intento de tirar minha vida. Tentei enterrar a adaga na garganta. Tentei morrer por afogamento no lago localizado em torno da montanha. Tentei tentei tentei. Mas continuo viva, e isso não é motivo de orgulho para mim.”
(A interrogada esboça um sorriso desolado.)
“Covarde que sou, provavelmente a misericordiosa Kannon me abandonou. Mas, o que eu... Eu, que assassinei meu próprio marido... Eu, que tive meu corpo violado por um ladrão... O que eu posso fazer? O que posso... Eu...”
(A interrogada subitamente irrompe, aos soluços, num pranto violento.)
relato da alma do defunto, através da boca de uma médium
“O ladrão violentou minha esposa, sentou-se próximo a ela e começou a consolá-la de diversas maneiras. Eu, obviamente, não estava em condições de falar nada. Meu corpo, da mesma forma, estava amarrado ao pé do cedro. No entanto, nesse momento, olhei significativamente para minha mulher, fiz sinais com os olhos vezes sem conta em sua direção. ‘Não leve a sério as coisas que esse home lhe diz! Não importa o que diga, desconsidere! Ele mente, dissimula.’ Era o que tentava transmitir a ela. Contudo, minha esposa, desconsolada e desacorçoada, sentou-se sobre as folhas caídas de bambu e ali ficou, a olhar absorta os joelhos. Mas não é que ela parecia estar anuindo à retórica do bandido? Ah, passei a me contorcer de ciúme! E o marginal continuava promovendo seu discurso, engenhoso, hábil, ardiloso. ‘Seu corpo está em desonra, foi maculado. Suas relações com seu marido nunca mais serão as mesmas. Que tal tornar-se minha mulher? Melhor do que continuar com seu marido, concorda? Se eu cometi esses atos horrendos, isso foi devido ao que sinto em relação a ti. Quero-lhe muito bem, sabia?’ Acredita que o vagabundo chegou ao ponto de dizer tal barbaridade?
“Ouvindo a palestra do bandido, minha mulher acabou por erguer o rosto. Um rosto encantado, fascinante, em êxtase! Até aquele momento, nunca havia visto minha esposa tão bela e pura! Bom, e o que essa esposa bela e pura respondeu para o bandido, na frente do respectivo marido, amarrado diante dela? Olhem, no momento estou nesse limbo que separa o mundo dos vivos dos mortos, e isso me deixa um tanto confuso. Mas, mesmo assim, toda vez que a resposta dela vem à tona, não posso deixar de sentir uma chama de rancor e ressentimento queimando dentro de mim. Eis que minha mulher respondeu, com determinação em sua voz: ‘Bem, nesse caso, leve-me consigo, não importa onde’.”
(O morto se fecha em prolongado silêncio.)
“O crime de minha esposa não foi apenas esse. Se assim o fosse, não estaria até o presente momento nesse imenso breu, me retorcendo de angústia e repulsa. De mãos dadas com o bandido, ela se dirigiu para fora da mata, como que envolvida por quimeras. Nesse momento, seu rosto perdeu as cores, tornou-se tétrico. Por fim, ela apontou para o pé do cedro, em minha direção. ‘Por favor, peço-te que mate esse homem. Enquanto esse homem existir, não me é lícito viver junto a ti.’ Ficou enlouquecida! Começou a gritar, gritar e gritar. ‘Mate esse homem! Mate esse homem! Mate esse homem!’ Mesmo agora, aquelas palavras me fustigam como tempestade, me empurram para baixo, me lançam de ponta-cabeça para o fundo do abismo insondável das trevas. Será que alguma vez tais palavras amaldiçoadas jamais chegaram a sair da boca de um ser humano? Será que alguma vez tais palavras amaldiçoadas jamais chegaram a roçar os ouvidos de um ser humano? Será que?... Será?...”
(Subitamente, o morto irrompe num riso de escárnio.)
“He he he. Ao escutar aquelas palavras, até mesmo o bandido empalideceu. ‘Mate esse homem! Por favor, mate esse homem! Mate! Mate!’ Minha mulher continuava urrando, agarrada ao braço do ladrão, implorando. Ele olhou fixamente para ela. Me mataria? Não me mataria? Não respondeu. Apenas deu um pontapé em minha esposa, que foi ao chão, caindo em cima das folhas de bambu.
(Novamente, o morto irrompe num riso de escárnio.)
“He he he. O bandido, sereno e tranquilo, cruzou os braços e lançou um olhar sobre a minha figura. ‘O que faço com essa mulher, hem? Mato ou não mato? Vamos, responda. Apenas concorde ou discorde com a cabeça. Será suficiente. Mato ou não mato?’ Ao escutar tais palavras da boca do ladrão, tive vontade de perdoá-lo de todos os seus pecados.”
(Novamente, o morto se fecha em prolongado silêncio.)
“Enquanto eu hesitava, minha esposa gritou qualquer coisa e, inesperadamente, correu célere para o interior da mata. O bandido lançou-se de chofre em seu encalço, mas não conseguiu agarrar nem mesmo a manga do seu quimono. E lá estava eu, a contemplar a cena. Tudo parecia miragem, ilusão.
“Depois que minha mulher desarvorou, o ladrão apanhou espada, arco e flechas, e cortou a corda apenas num ponto. ‘Bom, agora é cuidar do meu próprio rabo...’ Lembro-me vagamente de escutar o bandido resmungando essas palavras enquanto ocultava sua figura e se dirigia para fora da mata. Ele não deixou nenhum rastro, nenhuma pista. Nada. Apenas uma serena quietude que transbordava para as cercanias. Ah! Minto: o pranto de alguém se fazia audível. Enquanto me libertava das amarras, apurei meus ouvidos e prestei a máxima atenção. Não é que o pranto vinha daquele que olhava ao seu redor em busca do seu autor?”
(Pela terceira vez, o morto se fecha em prolongado silêncio.)
“Por fim, ergui meu corpo extenuado do pé do cedro. Diante de mim, reluzia a adaga que minha esposa deixara cair. Apanhei a arma e cravei-a no meu peito. Uma estocada. Regurgitei algo, uma massa cheirando a sangue veio à tona, chegando à minha boca. Não havia qualquer tipo de dor, agonia, aflição ou sofrimento. Meu peito tornou-se gelado e insensível, e o silêncio circundante tornou-se total, profundo. Um silêncio de morte. Ahhh! Que silêncio indescritível é esse! Do céu acima da mata à sombra da montanha, não se escutava nem mesmo o gorjeio de um passarinho. Havia apenas uma réstia de sol, flutuando desolada sobre a copa dos cedros e bambus. Uma réstia de sol... Até ela, pouco a pouco, foi diminuindo, desbotando, dissipando...
“Já não era capaz de distinguir cedros e bambus. Sucumbi ali mesmo, envolvido por um silêncio profundo. Nesse momento, alguém veio em meu sentido, pé ante pé, sem fazer ruído. Tentei focar minha vista naquela direção. Mas, à minha volta, trevas sutis me envolviam lentamente. Alguém, alguém... Esse alguém, com uma mão indistinguível, extraiu a adaga do meu peito, com cuidado, sem fazer alarde. Ao mesmo tempo, uma nova leva de sangue transbordou de minha boca. Desde então, naufraguei em trevas eternas, imensa caverna escura.”
(...)
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