Se meu corpo começa e termina em mim; se meu tempo de vida tem começo, meio e fim; se essa é a única consciência que tenho da realidade; então, como viver com os códigos de ética que os homens bem-intencionados estão sempre tentando aperfeiçoar? Por que não é certo pensar em agir somente em proveito próprio?
Se sou enganado, pressionado, excluído, diminuído e machucado por outra pessoa, ou se faço contra outros essas mesmas coisas em meu proveito, em ambos os casos estamos diante de comportamentos cheios de coerência. Esses comportamento são perfeitamente coerentes com o conhecimento que temos da realidade.
Nos casos de cooperação solidária com grupos, partidos políticos, credos religiosos ou outras quaisquer associações, o sentido de ajuda mútua é sempre apresentado como altruísmo, boa qualidade de caráter, bondade etc. Mas a situação continua a mesma: sozinho ou numa associação, continuamos fiéis ao autobenefício. Um homem levando vantagem sobre outro homem não é diferente de um conjunto de homens dividindo entre si as vantagens que juntos conseguem contra outro grupo ou associação.
E o homem age assim porque é essencialmente mau?
Não. Agimos assim porque somos coerentes com a consciência que temos da nossa realidade existencial.
E isso, somente isso, explica a ineficiência histórica dos códigos de ética, da tão sonhada justiça humana.
Se tenho certeza de que meu chamado eu começa e termina em mim mesmo, e que minha vida tem uma duração limitada, por que não irei trabalhar somente em meu único proveito? Por que não irei cuidar só de mim? Por que deixarei de procurar o máximo de prazer, o máximo de vantagens, se sei que amanhã posso estar morto?
Como posso esperar cooperação de alguém que sabe, por experiência e consciência, que, ao dividir uma coisa, ficará fatalmente com menos dessa coisa?
Sei, por experiência, que o prazer é agradável e que a dor é horrível. Por isso, é uma questão de bom senso o fato de eu fazer tudo para ter o máximo de prazer e o mínimo de dor. Doa a quem doer. Cada um que faça o mesmo.
Se sei que começo e termino em mim, sei que não sou os outros. Esse conhecimento, por si só, talvez não me levasse a ser tão egoísta. Mas o segundo conhecimento é que parece ser decisivo como determinante da sede de competição. E o segundo conhecimento é a firme consciência de que minha vida tem começo, meio e fim. Ou seja, os prazeres (que consideramos a razão de viver) precisam ser encontrados e usufruídos todos e com urgência porque minha vida pode acabar a qualquer momento. Se eu morrer antes de ter conseguido provar tantos prazeres quantos conseguiram as outras pessoas, é evidente que não vivi. Ou vivi, mas fui roubado, fiz um péssimo negócio da minha vida, fiz papel de bobo, fracassei completamente.
Pensando assim (e só assim sabemos pensar, por razão direta do tipo de consciência que temos da realidade existencial), temos naturalmente que ser egoístas, temos que agir sempre visando levar vantagem sobre os outros. É um comportamento normal. Coerente. Pensando assim, aquele que age contra mim, que me prejudica, que tira meu único pedaço de pão mesmo estando sem fome, não pode ser chamado de mau, de injusto, de ganancioso, de canalha. E sim de coerente, de lógico. É apenas um homem em perfeita sintonia com a realidade que conhecemos. Pois todos só sabemos o seguinte: a nossa vida está só em nós, dentro dos limites da nossa pele e pode acabar a qualquer hora.
Naturalmente, não precisa ser mencionado aqui o conhecido piedoso aos olhos dos outros, mas que, na realidade, procura com seus atos de bondade apenas aplacar seu medo de solidão, usando esses atos com o fim de que os outros gostem dele. Ou então capitalizem para ganhar os juros no céu, ou simplesmente não tem coragem de viver os dois lados da realidade. Bem, mas isso, que parece somente um quadro pessimista da chamada condição humana, se observado com objetividade, resultará apenas num quadro realista. Porque todos que conhecemos nossas vidas como finitas e separadas das vidas dos outros, iremos sempre nos comportar visando unicamente vantagens para nós mesmos. E eternamente em conflito angustiante com os códigos de virtude.
É um problema unicamente relacionado ao tipo de consciência que temos da realidade. Nossa consciência da realidade é que determina os rumos que nosso eu dá ao nosso comportamento. Se nos comportamos com egoísmo, mas com sentimento de culpa, o fato decorre de uma contradição interna onde a mente se apresenta dividida. De um lado, os impulsos ditados pela única consciência que temos da realidade. Do outro, os códigos morais que nos pedem para ser dignos, altruístas, cooperativos, bons, que nos dizem para amar nosso semelhante como a nós mesmos. E, apesar do conflito, dessa terrível contradição em nossa mente, continuamos egoístas. Porque a balança sempre penderá para o lado que a nossa consciência, a nossa razão diz ser a única realidade.
Assim, não se trata de aperfeiçoar os códigos de ética. Ou de forçar o cumprimento dos já existentes. Mas de alterar o tipo de consciência que temos da realidade existencial. Porque os comportamentos são efeitos do tipo de consciência. Se temos certeza de que nossa vida começa e termina em nós e de que é finita, não há como fugir do comportamento egoísta.
Por isso, é importante observar atentamente se de fato minha vida começa e termina em mim. E, nesse caso, eu seria um autogerador. Mas como ser um autogerador se sei que fui gerado pelo sêmen (pai) e pelo óvulo (mãe)? Como sou um autogerador se sei que sem o oxigênio, o sol, a água, os alimentos todos, não posso existir? Nem os meus próprios pensamentos, minhas ideias e certezas, nem isso eu gero por conta própria. Porque os pensamentos surgem quando querem surgir e não quando quero que surjam. E, se disserem que sou eu que tomo a decisão de pensar sobre determinada coisa, também não resolve. Porque quem é que tomou a decisão de tomar a decisão de pensar? A razão vem depois da intuição e funciona como um empregado desta. Primeiro surge o desejo de me levantar. Em seguida, o pensamento organiza esse desejo e ajuda na sua operação.
Nada existe no Universo que não seja interdependente. Incluído o próprio Universo. Tudo é parte de tudo. O ser, o chamado verdadeiro Eu, não pode ser alcançado pela razão. Está além (ou aquém) do certo e do errado, do permanente e do impermanente, do ser e do não-ser, do absoluto e do relativo, da felicidade e da infelicidade, da cooperação e da competição. Está fora de qualquer dualismo que a razão possa inventar. E a razão só existe no plano dualista.
O importante, assim, é ir além dos dualismos para encontrar com a intuição, com a experiência atenta à realidade (e nunca ao conceito, à ideia) de que somos órgãos de um organismo, assim como nosso coração é órgão de nosso corpo. Somos o nosso coração e somos nosso corpo. E isso é exatamente igual a: somos nosso corpo e somos um órgão maior que o contém. Mas sem cair o dualismo entre a parte (nós) e o todo. Sem prender a mente em ideias de todo, de um, de coração, de órgão, de organismo, de mente, de ser, de eu. Temos para uso existencial uma série se preconceitos, de ideias sobre a realidade da vida. Que tal observarmos a vida, vivermos a vida com maior atenção e integração, em vez de passarmos a vida correndo atrás de preconceitos?
Nelson Coelho, Zen: experiência direta de libertação (Itatiaia, 1978)
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