O zen nos ensina a viver no aqui-agora.
Se todos temos a morte no futuro, por que não educarmos as crianças para viver no presente? Mas somos educados para viver para o futuro. E o que é isso senão estarmos sempre tentando vencer os momentos presentes, estarmos sempre tentando eliminar as realidades imediatas, estarmos sempre caminhando não pelo prazer de caminhar, mas pela compulsão de chegar? Só a chegada parece ter importância. Nunca o caminho. Mas a vida está no caminho, da mesma forma que a morte está na chegada. Sempre.
Lutar pela vida não quer dizer lutar só pela chegada. É isso que nos ensinam. Mas isso não é lutar pela vida. É lutar pela morte. Vence na vida aquele que corta mais caminhos, aquele que fica livre mais depressa de um número maior de obstáculos. E que obstáculos são esses? São a própria vida. Por isso, em termos de vida, o importante é viver os obstáculos. Da mesma maneira que vivemos, que satisfazemos nossos apetites mais comuns. É tão absurdo querermos ficar livres para sempre dos obstáculos da vida da mesma forma que querermos comer para não precisar nunca mais comer. Mas é desse jeito que vemos o sentido de caminhar na vida. Caminhamos para ficar livres do caminho. E assim vamos ficando livres da própria vida.
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Somos educados para o serei, nunca para o sou. Nas escolas, as crianças aprendem coisas que lhes serão úteis no futuro. E quando chega o futuro, quando saem da escola e de casa, quando terão de viver por conta e risco, aí descobrem com revolta que foram lesadas.
Descobrem que não lhes ensinaram a viver com a vida. Descobrem que lhes ensinaram a viver contra a vida. Porque lhes ensinaram a construir um futuro e não um presente. Descobrem que foram condicionadas diariamente e nos mínimos detalhes a viver para o futuro. Descobrem que não conseguem, não sabem viver no presente.
Descobrem que no lar e na escola lhes ensinaram a subir um morro. Descobrem que lhes impingiram essa compulsão de terem sempre de estar subindo um morro. Mas nunca pela realização, pelo prazer de subir. E sempre e somente pelo prêmio de chegar. Essa distinção é importante. E alguns se anulam ou se destroem como indivíduos e como seres sociais ao se recusarem a continuar subindo o morro. Toda a sociedade — que, como cada um de seus membros, só conhece a realidade da compulsão de subir morros —, toda a sociedade se encarrega de eliminar aqueles que não aguentam mais a maldição do alpinismo compulsório. E outros se anulam também e se destroem quando cumprem até o fim o seu condicionamento de alpinista com uma meta de sucesso. Porque toda a ilusão do morro desaparece ao chegarmos ao seu topo.
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A certeza da morte nos leva a dois tipos de comportamento muito conhecidos. Um é viver desesperadamente, comendo a vida pela boca e pelo nariz. Porque cada dia que passa significa um dia a menos de vida ou um novo passo para a morte. Qualquer coisa assim como se viver fosse um processo crescente de desgaste. Um balão que se esvazia. Ou uma lata d’água cujo conteúdo vai pingando pelo furo que existe no fundo. O outro tipo de comportamento nos leva a não viver. Isto é, viver com medo de viver. Porque, se a morte é certa, que adianta viver? Que adianta me aperfeiçoar como indivíduo? Que adianta agir humanamente no plano social? Que adianta me esforçar para construir coisas e a mim mesmo? Se existe a morte, todo esforço de vida, toda a luta para sobreviver são um absurdo. Se existe a morte, viver é um absurdo. Toda ação nova exige um esforço novo. Toda ação é feita para se alcançar alguma coisa. Essa alguma coisa está sempre no futuro. E no futuro, próximo ou distante, está sempre a morte. Planto no presente e colho no futuro. Se a ação e o esforço estão no presente, o resultado está no futuro. Se tenho certeza da morte, sei que ela poderá vir a qualquer momento. Assim, a ação de agora, o esforço e o sacrifício ou a dor deste momento poderão não ser recompensados. Planto e não colho, planto sem a segurança de colher. E disso, dessa incerteza, nasce o receio e a não vontade de agir. Que determina o não viver.
Mas, diante da certeza da morte, há ainda um terceiro comportamento: viver bem devagar para não gastar a vida. Viver cuidadosamente, esperando que assim a gota d’água pingue com menos frequência e a lata fique mais tempo cheia. Viver um pouquinho só por dia. Se cada dia vivido é uma gota que pinga da lata, cada dia não vivido poderá ser uma gota economizada. E a lata poderá ficar mais tempo cheia. Mas, cheia de quê?
Felizmente, esses três caminhos não esgotam a totalidade de caminhos que a certeza da morte põe à nossa disposição.
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Existe um caminho que nos leva a nós mesmos. Ao centro do nosso ser. Ao reino do não-tempo. Onde a menor ação deve ser executada de maneira total. Quer dizer, dar-se por inteiro ao menor gesto, porque é no exato momento de qualquer um dos nossos gestos (inclusive o de simplesmente respirar) que estamos vivos. Não é no momento anterior, nem no posterior. Se entrarmos em todos os nossos momentos, entramos no todo da vida. Dar importância às menores coisas. Lidar com o cotidiano com a mesma intensidade de presença e de atenção, de interesse e de concentração com que lidamos com os chamados momentos importantes ou decisivos da vida. Estar vivo em todos os momentos da vida e não apenas naqueles em que nossa razão, nossos conceitos de vida classificam como importantes e significativos. Mas nós só estamos vivos (atentos) quando diante dos momentos importantes, que nós ou os outros consideramos importantes. Só nesses momentos achamos que vale a pena estarmos presentes, só a eles nos entregamos. E como nossa vida é feita de um número muito maior de momentos, vamos dizer, cotidianos, insignificantes, comuns, o resultado é a gente viver muito menos do que poderia.
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Para estarmos na realidade, para enxergarmos a realidade, precisamos tirar a nós da frente de nós mesmos. Nossa cegueira é porque estamos entre nós e a realidade, entre nós e nós mesmos. É preciso tirar a gente da frente da gente. Só assim o chamado mundo objetivo se dá a nós. Só assim o sujeito se integra ao objeto. Só assim entramos no aqui-agora. Conseguir enxergar as coisas e não apenas os conceitos que temos delas.
Olho para um terreno baldio e tenho uma sensação agradável, de plenitude, de contentamento em estar vivo. Ou então olho para uma rua qualquer, vazia ou cheia de automóveis ou de gente. Ou para a fachada de um edifício ou para o mar, para o céu. Ou para minhas mãos, para o cinzeiro sobre a mesa. Ou para uma árvore. Para o meu sapato. Ou para duas pessoas conversando. Podemos sentir-nos maravilhados olhando para as coisas mais diversas, e essa sensação nada tem a ver com o sentido, o valor, a função, hierarquia ou símbolo que comumente vestem as coisas que olhamos. Nessas horas, isso acontece porque não estamos entre nós e as coisas que os sentidos captam. Não estamos ali parados como uma parede entre nós e as coisas, não estamos ali mostrando as coisas para nós mesmos, não estamos conceituando, julgando, classificando, não estamos medindo a função ou utilidade da coisa que está diante da nossa percepção.
Nesses momentos de nudez das coisas (porque de nudez nossa), nesses momentos de integração com tudo e com o todo, a gente experimenta uma deliciosa sensação de vida. Qualquer coisa assim como se a coisa, o fato exterior, os objetos fossem existir para sempre. A menor coisa à nossa frente está vibrando de vida e sendo em si mesma um espetáculo a que não cansaríamos de ficar assistindo, participando, tamanha sua riqueza de tons, de ritmos, de variações, de intensidades, na coisa ou coisas que parecem estar acontecendo naquele momento especialmente para nós. O objeto diante de nós então parece eterno porque possuído de uma vibração sem começo nem fim, fora do tempo, e tudo isso ganha maior plenitude porque sinto naquele momento que nada se separa de nada, que cada coisa é ela mesma, mas intimamente ligada a tudo o mais. Nem conseguimos pensar em ligação ou não ligação. Tudo isso deixa de ter importância. E então nos sentimos muito bem. Leves, despreocupados, seguros, cheios de vida.
Ao entrarmos nas coisas de maneira assim tão direta e penetrante, elas também entram em nós da mesma maneira. E isso só acontece quando estamos vazios de nós mesmos, quando tiramos a nós (o eu ilusório) de dentro de nós, abrindo lugar para a entrada do mundo objetivo. As coisas, a realidade das coisas, não cabem dentro de nós porque estamos cheios de nós mesmos e dos conceitos que temos das coisas.
Mas o mergulhar no aqui-agora pode tornar-se uma faca de dois gumes. Por um lado, pode levar a uma vida mais plena. Isso quando se entende corretamente o seu sentido. Mas, por outro lado, pode levar a uma forma de suicídio. E é assim a forma incorreta de entender o aqui-agora: se me garantirem que vou morrer dentro de um ano, ou me suicido imediatamente ou corro para a vida com tanta fúria, com tanta fome de viver tudo o que não vivi (mas que fui sempre adiando para o futuro), que provavelmente eu acabe morrendo em poucos dias. Porque irei engolir a vida sem mastigar, sem digerir, e tanta quantidade jogarei para dentro de mim que morrerei de indigestão. Ou talvez estoure como um balão em que se injeta mais ar do que pode receber. Isso sem falar que tudo que é comido pela boca e pelo nariz não dá satisfação. Talvez essa seja uma experiência muito conhecida da juventude atual. Essa é, porém, a maneira incorreta de estar no aqui-agora.
A outra maneira é a da integração: estar no presente por estar integrado nele e não simplesmente por temer o futuro. Porque, então, seria apenas uma fuga e um dualismo flagrante entre o lugar e o momento em que se está e um lugar ou momento distantes no tempo e no espaço. Estar integrado no aqui-agora é não estar preocupado nem com o tempo, nem com o espaço. É não estar apegado à ideia do aqui-agora. Assim, o aqui-agora é vivenciado para se tornar a única realidade existente. A aproximação analítica, intelectual, teórica da realidade impede a integração no aqui-agora.
Somente por meio da ação direta, do exercício persistente de concentração no momento e no lugar em que se está, de renúncia às fugas para o passado ou para o futuro, de concentração no ato imediato ou nas percepções imediatas dos nossos sentidos e na comunicação direta com as pessoas, somente com a prática exaustiva desses exercícios de concentração é que se pode estar no aqui-agora. Mas é preciso não esquecer que o aqui-agora é uma realidade dinâmica e não estática. O aqui-agora não é uma parada no tempo e no espaço. O aqui-agora é um fluir constante. Se em todos os momentos de nossa vida e em todos os lugares nós estivermos totalmente presentes, o momento se torna eterno e o lugar se torna infinito. Porque os momentos e lugares se libertam dos rótulos de começo e de fim que pomos neles. Se só conhecemos o presente como realidade, o passado e o futuro (o começo e o fim) perdem o sentido de ser.
Há uma maneira bem simples de se entender esse fato. Uma pessoa apaixonada está distante do objeto amado em tempo e lugar. Mas, dentro de dois dias, irá encontrar-se com seu amor. E só por isso espera. Qual o tipo de relação dessa pessoa com os momentos e lugares presentes? O pior possível. Não consegue concentrar-se em nada. Em nada que não sejam os seus sonhos de amor, em nada que não seja o fluxo constante de pensamentos acariciantes ou ansiosos que voam o tempo todo para o passado e para o futuro. Não chega nem a ver ou ouvir o que se passa ao seu redor. Seus pensamentos e fantasias, sua emoção excitada, ou se dispersam na recordação dos momentos gostosos na companhia do objeto amado ou vão para o futuro, imaginando os momentos maravilhosos que virão. Para essa pessoa, o presente não existe. E essa é uma situação bastante conhecida. Como também é conhecida esta outra situação, bem diferente, onde o passado e o futuro deixam de existir: o momento em que a mesma pessoa do exemplo encontra seu amor.
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Quem gosta do momento e do lugar em que está procura ficar nele. Mas, quando não nos sentimos bem num momento ou num lugar, e não podemos nos retirar, retirada física, então usamos o artifício de mandar nossa mente para outro lugar no passado ou no futuro. Ou para outro momento já vivido ou a ser vivido. São as chamadas fantasias ou fugas por falta de capacidade de aguentar o presente, a realidade imediata.
O homem sai do presente e faz fugas longas ou rápidas para o futuro ou para o passado, porque o homem tem o mau costume de pensar mais em si mesmo (com orgulho ou com piedade) do que nas ações que está praticando. Mais em si mesmo do que nas pessoas ou fatos ou coisas que tem diante de si. Quem tem o hábito de se preocupar mais consigo mesmo do que com o que está fazendo (e o alvo aqui seria o de se transformar no próprio ato que realiza), quem tem o hábito de se preocupar mais consigo mesmo do que com as pessoas com quem convive, jamais conseguirá se integrar no aqui-agora. É alguém sempre em fuga do lugar, do momento presente. É alguém sempre em fuga de si mesmo. É alguém sempre em fuga da vida. E a vida está só e sempre no aqui-agora. Para se chegar ao aqui-agora, o primeiro passo é este: entender que seu mundo particular é muito importante, mas nunca esquecer que seu mundo particular é um mundo dentro de um mundo. E tão intimamente ligado um ao outro que é impossível traçar os limites, as fronteiras desses mundos.
Só é independente aquele que compreende e pratica a sabedoria da interdependência. Só existo porque tudo o mais existe. Somos partes de um grande todo, de uma unidade indivisível. Estou no todo como o todo está em mim. Um não existe sem o outro. O que considera e age como sendo seu mundo particular mais importante que o mundo geral será sempre uma pessoa incapaz de se integrar no aqui-agora. Na vida. Porque será sempre pessoa por demais preocupada consigo mesma. Mutilada no todo. E quem está por demais atento a si mesmo dificilmente se liga de maneira profunda ao momento e lugar em que está. Porque esquece que o momento e o lugar são também ele. É um homem-morte. Porque só consegue se ligar a si mesmo.
Acho que esta história zen ilumina bem o sentido do aqui-agora: um caminhante se vê perseguido por um tigre. Na sua fuga, corre até chegar à beira de um precipício, onde há uma velha videira que pende seus grossos galhos em balanço sobre o fundo declive. Aproveita essa única saída e se pendura no galho da videira, protegido das garras do tigre. Dá um suspiro de alívio e se prepara para esperar que o tigre desista da perseguição e vá embora. Mas, olhando para baixo, vê que lá o espera outro tigre, que já o viu e está rugindo na sua direção. Então, pensa: “Bem, estou seguro enquanto meus braços aguentarem”. E já está aceitando a nova situação quando percebe que alguns ratos estão tranquilamente roendo a base do galho em que se sustenta. Que fazer? De repente, nota que a velha videira está carregada de maravilhosos cachos de uva maduros. Calmamente, colhe um dos cachos, leva a uva à boca, saboreia e exclama: “Que delícia!”.
Nelson Coelho, Zen: experiência direta de libertação (Itatiaia, 1978)
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