
O zazen não é simplesmente um método, um exercício para se atingir determinado fim. O zazen é uma maneira diferente de estar na vida. É sobretudo uma maneira de ser a vida. Por isso, não pode ser tomado como um exercício visando à libertação interior, um exercício para se atingir a iluminação. Tampouco como um método de concentração, de relaxamento físico e mental. E muito menos, é claro, um escapismo da realidade fácil e difícil do dia a dia. Quando se tem um fim em mira, uma meta, seja qual for, o dualismo entre nós e essa meta já está formado. Assim, ao praticarmos o zazen com a meta da iluminação, estaremos praticando o dualismo e não o zazen. A prática do zazen e a iluminação (satori) são uma só e a mesma coisa. Quem consegue praticar corretamente o zazen durante uma hora, teve uma hora de iluminação. Quem pratica o zazen mesmo nas horas em que não estiver sentado na postura correta, estará iluminado enquanto estiver praticando. Comendo, conversando, tomando banho, em qualquer de nossas atividades podemos praticar o zazen, desde que saibamos praticá-lo, desde que consigamos praticá-lo corretamente. E isso requer uma disciplina muito rigorosa, onde a vontade e a determinação do praticante são postas à prova.
Dogen, o fundador da escola Soto no Japão no século 13 e um dos mestres mais importantes de toda história do zen, fez do zazen ponto fundamental de seus ensinamentos. Para ele, o zen começa e termina na prática do zazen. Em seu livro Shobogenzo, que se manteve secreto durante séculos, Dogen fala das virtudes do zazen:
A prática do zazen pode criar uma metamorfose e uma revolução, ao mesmo tempo, do corpo e da mente. Os conhecimentos que adquirimos até hoje, o nosso dogmatismo complicado serão cortados e nós poderemos reencontrar a verdade e compreender o verdadeiro satori.
A mente daqueles que praticam o zazen é aberta, tranquila e cheia de paz. E podem encontrar a verdadeira liberdade interior pela ajuda e encorajamento mútuos de todos os que praticam zazen.
No momento da prática, a terra, as árvores, os edifícios e até as paredes, as pedras, a areia, tudo se torna zazen.
Esse espírito de liberdade e a verdade do satori vão se desenvolvendo cada vez mais e exercem influência sobre os outros. E as pessoas que vivem ao lado de quem já recebeu essa influência também são beneficiadas.
É preciso praticar o zazen sem objetivo, sem consciência pessoal, tranquilamente.
Não se deve distinguir o satori da prática do zazen, como se costuma fazer, porque a prática do zazen já é satori.
Se temos consciência do satori, esse não é o verdadeiro satori.
Mesmo uma só pessoa que pratica o zazen tem influência sobre as circunstâncias e promove a verdadeira paz e a verdadeira liberdade interior em todas as pessoas.
Se soubermos guardar o estado de concentração mental obtido pela prática do zazen em todas as ações da vida cotidiana, adquirimos a paz interior e uma mente livre. Então, acharemos que a vida vale a pena ser vivida.
A prática do zazen é, em si mesma, um método completo e o caminho mais curto para a verdade. A atitude mental indispensável durante a prática do zazen é o abandono completo do Eu e a ausência de todo objetivo utilitário para si. É assim que podemos entrar em harmonia com o Universo.
O Universo inteiro é o seu corpo. Assim, com seu corpo você pode praticar o zazen. Seu corpo é o Universo.
A seguir, veremos como o verdadeiro zazen deve ser praticado, descrevendo suas práticas em um templo zen.
Deve-se chegar dez minutos antes da sessão. Não é aconselhável estar com o estômago cheio. Não é aconselhável estar com o estômago vazio. Evitar roupas muito apertadas. Tirar os sapatos antes de entrar no zendo (sala de meditação). Três pancadas num tambor de madeira indicam o início da sessão. No zendo, entra-se com o pé esquerdo após inclinar levemente a cabeça, tendo as mãos juntas pouco abaixo do peito. Dirigir-se depois para o assento, ao qual se faz uma reverência com as mãos postas (gassho). Dar meia-volta, da esquerda para a direita e fazer novamente o gassho. Para os ocidentais que não se sentam na posição de lótus (pernas cruzadas), é esta a postura correta: apoiar os dois pés no chão, as costas retas, as pernas meio abertas, permanecer imóvel com os olhos entreabertos olhando para a frente numa inclinação de 45 graus. Manter as costas da mão esquerda sobre a palma da mão direita e os polegares se tocando levemente. Boca fechada e dentes cerrados, impedindo a penetração do ar. Respirar pelo nariz. Cabeça erguida normalmente, sem levantar o queixo. As linhas que passam pela orelha e ombro, nariz e umbigo, devem cair perpendiculares sobre o assento. Os ombros devem ser levados para trás e a parte baixa da coluna para frente, de maneira que o corpo fique bem ereto. Não deve inclinar para a direita, nem para a esquerda. Para frente, nem para trás.
Mantenha-se nessa posição. Se a posição é correta, a respiração se tornará correta (abdominal, profunda) por decorrência. No zazen, tudo nasce da posição correta, respiração correta, mente correta. Quanto aos pensamentos (no que pensar), siga o conselho de Dogen, que foi quem mais estudou e propagou o zazen: “Pense no impensável. Como pensar no impensável? Pensando além do pensar e do não-pensar”. Concentre-se, mas não em pensamentos. Quando o dirigente entrar na sala, fazer gassho à sua passagem. Três toques do sino marcam o início da meditação. O dirigente toma o kyosaku (bastão de madeira de mais ou menos um metro, tendo uma das pontas mais fina, em espátula) e irá andar lentamente com ele nas mãos durante a sessão. Quando o praticante está inquieto (sua mente e seu corpo agitados), o dirigente poderá achar necessário lhe dar uma pancada com o kyosaku, para o restabelecimento da atenção. Um aviso inicial é dado com um ligeiro toque no ombro. A pancada não é uma punição, mas sim uma ajuda para se obter concentração e relaxamento. O próprio praticante poderá solicitar a pancada, inclinando a cabeça.
Ao fim de meia hora de absoluto silêncio e imobilidade, soam dois toques de sino. Levantar-se, arrumar a almofada em que esteve sentado e fazer gassho duas vezes, como no início. Colocar-se na posição shashu (punho esquerdo fechado sobre o peito e coberto pela palma da mão direita aberta, antebraços na horizontal). Nessa posição, todos os praticantes marcham lentamente pela sala, da esquerda para a direita, após uma reverência inicial e coletiva. Avançar de meio em meio pé, regulando os passos pelo ritmo da respiração. Um toque de sino anuncia o final da marcha, que se chama kinhin e dura cinco minutos. Juntar os pés, fazer uma pequena reverência e voltar para o assento em passos normais. Chegando ao lugar, sentar-se após fazer gassho duas vezes. Depois de mais meia hora de silêncio e imobilidade, novo toque de sino indica o final. Proceder como antes do kinhin e sair do zendo com o pé direito, fazendo uma reverência. O objetivo do zen é a liberdade, mas sua disciplina é das mais rigorosas que se conhece. Para o principiante, o profundo silêncio coletivo e a imobilidade produzem uma atmosfera bastante tensa, quase insuportável. Mas a luta consigo mesmo para se manter na posição correta ajuda a superar a tensão inicial.
Após o zazen, vem uma sensação agradável de descanso, de relaxamento e sobretudo de vitalidade. Sai-se da sessão com uma forte vontade de agir, de viver, de fazer coisas. Então, os praticantes são convidados a tomar chá. E, durante o chá, o mestre fala sobre o zen e responde gentilmente às perguntas que lhe são feitas.
Nelson Coelho, Zen: experiência direta de libertação (Itatiaia, 1978)
Comments